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Quarta-feira, 5/12/2001
Digestivo nº 59

Julio Daio Borges

>>> À SUA IMAGEM E SEMELHANÇA A clonagem está em pauta novamente. Segundo os entendidos, uma discussão ao mesmo tempo nova e velha. “Nova” (ou precoce) porque o mundo não está tecnologicamente preparado para clonar um ser humano. (Drauzio Varella, por exemplo, estima que os primeiros experimentos só começarão em 10 ou mais anos.) E “velha” porque esse blablablá moralista não tem o menor cabimento na cabeça dos cientistas. Conforme explica, mais uma vez, o autor de Estação Carandiru, todo o processo se resume em pegar uma célula (um espermatozóide ou um óvulo) e trocar seu núcleo. Não há vida humana envolvida. Nenhuma questão ética a ser discutida. No seu ponto de vista, é muito mais “grave” (dentro do que argumenta, approposito, a Igreja) transplantar órgãos do que intercambiar material genético. Talvez ele tenha razão, mas o fato é que a população “leiga” (ou “laica”) ainda não está suficientemente familiarizada com essas revoluções, necessitando, como os escolásticos, de séculos para entender esse mistério que se compara ao da santíssima trindade: dois em um; três em um; dois de um; três de um. Doutor Drauzio garante que o problema da “alma” é fácil de resolver: cada pessoa se forma a partir do ambiente em que nasce, cresce e se desenvolve, tendo os genes muito pouco a ver com isso. E, na verdade, se formos analisar os bilhões de dólares investidos em cada projeto, não haverá Cristo que impedirá a manipulação de DNAs, como se fez com os transgênicos (apesar da polêmica), nos próximos decênios. Já estão chamando o século XXI de Século da Biotecnologia. Os cenários de “1984”, “Admirável Mundo Novo” e – como sempre – do Nazismo (da Eugenia) persistem, mas quem é capaz de deter os arautos do “progresso”? Às vezes, a mídia ressuscita esses assuntos para dar a ilusão, à opinião pública, de que ela tem o controle da situação. Tem nada. É mera espectadora. Esse é um jogo de cartas marcadas. Aliás, quem foi que disse mesmo que “Deus” não jogava dados?
>>> Batalha de Mídia
 
>>> I READ THE NEWS TODAY OH BOY Com a morte de George Harrison, ficam enterradas as últimas esperanças que se tinha de uma acalentada reunião dos Beatles remanescentes. Quer dizer: segundo foi publicado, em meio às homenagens póstumas, parece que o próprio George inviabilizou sistematicamente qualquer “revival”: prometeu jamais tocar em uma banda com Paul McCartney novamente. E cumpriu. Parece que as desavenças entre ambos datam desde os Quarymen, culminando com a tumultuada gravação de Let It Be, onde no documentário Anthology, Paul ouve de George: “Me diga o que você quer que eu faça, que eu faço. Se quiser que eu toque, eu toco. Se não quiser que eu não toque, eu não toco.” O fato é que ele nunca foi levado a sério por Lennon & McCartney. Ringo também não foi, tendo precisado de “a little help from his friends”, mas a diferença é que Richard Starkey nunca ambicionou muito. George Harrison quis ser mais que um guitarrista competente (John Lennon reconhecia sua superioridade técnica), quis ser um compositor. O autor de Imagine conta como ajudou o mais jovem dos Beatles a montar suas primeiras canções, como Taxman, mas ressentiu-se quando não obteve o devido crédito (tendo sido agredido por Harrison em sua autobiografia). E como não era de levar desaforos para casa, o marido de Yoko Ono acabou acusando o ex-colega de plagio, por My Sweet Lord. É o que chamam de relação de amor-e-ódio. É inegável, no entanto, o talento do autor de Something, Here Comes The Sun e While My Guitar Gently Weeps. Ao mesmo tempo, a dupla mais consagrada da música pop teve razão em suprimir Not Guilty e todo o All Things Must Pass (o vôo solo de Harrison), embora George tenha pressionado para colocar mais que uma ou duas faixas suas no White Album, e nos subseqüentes. Quando olhava para trás, o orientalista, amigo de Eric Clapton, menosprezava a importância dos Beatles (talvez desprezando aqueles que o haviam desprezado). Em meio a tantos réquiens, esqueceram de mencionar o disco Cloud Nine, uma coleção de boas peças, de 1988. E os Travelling Wilburies, com Tom Petty e Roy Orbison. Não adianta: mesmo que falasse em filosofia hindu, o negócio dele era mesmo rock’n’roll. E do bom.
>>> All Things Must Pass
 
>>> ME LEIAM, NÃO ME DEIXEM MORRER Lygia Fagundes Telles esteve no Esquina da Palavra, do Itaú Cultural. Há mais de 70 anos, uma militante incansável da Literatura, trazendo novo alento aos jovens escritores. Um exemplo de pessoa que se dez através dos livros, formação rara hoje em dia, caminhando a passos largos para a extinção. Desencantada com o audiovisual, observa que atualmente não encontra anúncio em que o anunciante não seja o sexo. Defende o amor platônico com unhas e dentes porque, em sua concepção, ele corre paralelamente à inteligência. Lygia, aliás, foi musa dos maiores poetas do século XX: Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Uma gente que daqui a pouco vira nome de estátua, rua ou viaduto para, aí sim, cair definitivamente no esquecimento. Lygia defende ardentemente uma causa perdida: a da escrita. E pede insistentemente: me leiam, não me deixem morrer. Um apelo tão genuíno que conduz o espectador a um de seus livros. Qualquer que seja, quem quer que seja, ela autografará sempre afetuosamente, na primavera, no verão, no outono ou no inverno. Um passeio que vale à pena – e que se recomenda vivamente aos não-iniciados – é aquele por Ciranda de Pedra. A obra conta a saga de Virgínia: primeiro, uma menina renegada, fruto de um amor proibido, solta no mundo, sem família; depois, uma mulher feita, crescida no isolamento e na distância, num internato, voltando às origens para encontrar uma realidade degradada e degradante. Virgínia que, a princípio, produz estranhamento, por ser tão desajeitada, malquista e não especialmente bonita, acaba por conquistar a todos, justamente pela diferença, por ter escolhido um caminho somente seu. Virgínia não é a autora. Virgínia, única, não é ninguém.Virgínia, no fundo, é cada um de nós. Vivendo uma infância idealizada, num universo de sonho, às vezes cruel, porém fascinante nos seus mistérios. Uma juventude de recriminações, na solidão do quarto fechado, na busca incessante pela pessoa que se vai ser. Uma idade adulta de choques e descobertas, do peso e da complexidade do mundo, que não é nem bom nem ruim, apenas é, irremediavelmente. Eis o passeio por Ciranda de Pedra. Um jogo, ao mesmo tempo, sério e brincalhão. Tanto por tão pouco. Me leiam, não me deixem morrer.
>>> "Ciranda de Pedra" - Lygia Fagundes Telles - 190 págs. - Rocco
 
>>> O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE) São Paulo vai caminhando, cada vez mais, para a sua declarada vocação de “business center”. Já é ponto pacífico, entre os profissionais envolvidos com turismo, que a cidade é majoritariamente assediada por executivos. Por isso, a proliferação de flats, o aumento de publicações bilíngües (ou para estrangeiros) e a ênfase crescente na imagem “cosmopolita” com que regularmente se define a capital paulista. Nesse contexto, consagram-se restaurantes como “O Compadre”, que, próximo aos principais centros de convenções da metrópole, especializa-se numa culinária regionalíssima, atraindo estrangeiros em trânsito pelo País. De uma casa na Vila Maria, com freqüentadores ilustres como Ayrton Senna, passou a um salão amplo, com sala especial para eventos e reuniões de empresas. A cozinha é a típica mineira, com direito à decoração característica da fazenda, e até à trilha sonora condizente com o clima. Os destaques são, portanto, o feijão tropeiro, o tutu, as carnes (de porco e de vaca), as pingas e os doces. Para quem aprecia a bebida mais popular no Brasil, o garçom disponibiliza um cardápio com mais de 100 tipos de aguardente – todas com seus nomes pitorescos, produzindo os efeitos mais diversos (muito cuidado ao se levantar da cadeira). No caso dos quitutes e das compotas, o visitante tem direito a se esbaldar com o figo em calda, a goiabada, o queijo e o doce de leite mais fresco que se pode encontrar, feito no dia. Quem quiser carregar para casa essas iguarias, que só em Minas há, tem a chance de adquirir os produtos da pequena e simpática loja dentro do próprio restaurante. O estacionamento é grátis e, durante os fins-de-semana, shows musicais animam as dependências d’O Compadre, que evocam os velhos tempos do faroeste. Os forasteiros, que por lá circulam, estão cobertos de razão.
>>> O Compadre - Av. Otto Baumgart, 500 - Tel.: 3726-2694
 
>>> O HERÓI DA MINHA PRÓPRIA PROFECIA Muito bafafá por causa de Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho. É quase impossível dar um parecer definitivo sobre o filme, mas os nossos ases da pena já o estão chamando de obra-prima para cima. Será? Mais intrigante ainda é a necessidade de afirmar que Lavoura Arcaica não tem nada a ver com todo o precedente cinema brasileiro. Uma falácia tremenda. Principalmente porque Selton Mello – que finalmente foi consagrado como grande ator que efetivamente é – teve sua formação enriquecida justamente por participações em longas que a crítica pretensamente ignora ou execra. Ou seja: para essa gente que não quer se comprometer com a sétima arte à brasileira, Luiz Fernando Carvalho, os produtores, os técnicos e o elenco aportaram no País como marcianos na Terra, sem qualquer parentesco com seus antecessores a não ser o idioma português. É óbvio que, em termos de realização, Lavoura Arcaica é um grande acontecimento. Como também o foram, O Auto da Compadecida, Glauber Rocha e Eu Tu Eles. Aliás, outra postura tremendamente previsível dos nossos cinéfilos na imprensa é a necessidade que eles têm de combater o bonito, o positivo o alegre para em seguida endeusar o feio, o negativo, o triste. De acordo com esse raciocínio, nossos resenhistas reconheceram, por exemplo, o talento de Matheus Natchergaele, mas encheram de “senãos” o filme de Guel Arraes, porque João Grilo era uma figura por demais otimista, simpática, altiva. Não combinava com o retrato “tipo exportação” do Brasil. É chique, é cool, é elegante: esmiuçar dramas psicológicos; compor vastos painéis com traumas de infância; subverter a moral e entronizar a porção animalesca do homem. Nesse sentido, Lavoura Arcaica é um prato cheio. Talvez um clássico no gênero, mas daí a querer recomendá-lo como “programa obrigatório” para o fim-de-semana – quando as pessoas tentam amortecer a realidade e encarar o mundo com mais esperança – existe uma grande distância. De concreto, pode-se apontar como excepcionais as performances de Raul Cortez (um estudo sobre a incomunicabilidade), a fotografia e a trilha (casadas como não se via há décadas) e o texto de Raduan Nassar (que imperdoavelmente parou de escrever). O resto é especulação barata.
>>> Lavoura Arcaica
 
>>> DIGA O SEU NOME E A CIDADE DE ONDE ESTÁ FALANDO
Roberto Araújo, de São Paulo: “Toda boa carreira é sempre feita sobre dois pilares: a fundamental formação técnica e saber o que pensam os que estão no comando do processo. Aqui você têm as duas coisas. Naturalmente que para 'fazer efeito' não basta folhear a revista. É preciso usar todos os serviços propostos e ler as reportagens. Assim, em muito pouco tempo você também vai estar 'rugindo'.”
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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