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Sexta-feira, 22/2/2008
Entrevista a O Tempo
Julio Daio Borges

1) De 2000 para cá, que é o período referente à existência do Digestivo Cultural, o site teve muitas caras, estilos, colaboradores etc. Hoje, em fevereiro de 2008, como você definiria a "filosofia" do Digestivo? Qual seria a melhor definição para o site e para o que ele divulga, prega e acredita dentro do que faz?

A sua pergunta é boa porque eu sempre tive dificuldade para definir o Digestivo Cultural. E parece que, à medida que o site vai incorporando novas seções e funcionalidades, o grau de complexidade vai aumentando...

Para simplificar, a definição que eu mais uso é a de revista eletrônica focada em jornalismo cultural. Isso porque, em 2000, a internet brasileira era uma criança e buscamos as definições no papel, nas publicações que nos inspiraram — como a Bravo! sob o comando do Wagner Carelli, o "Caderno Fim de Semana" editado pelo Daniel Piza e, claro, as colunas do Paulo Francis, que eram uma revista em si.

Mas, como você mesmo disse, o Digestivo já passou por tantas encarnações que eu poderia tentar defini-lo pelas seções que fomos criando ao longo dos anos: Newsletter, Notas, Colunas, Editoriais, Comentários, Ensaios, Blog, Entrevistas e Podcast.

Acontece que o Digestivo Cultural é, também, uma comunidade de Leitores. É uma plataforma de lançamento para novos autores. É uma referência em matéria de jornalismo colaborativo; e o é, ainda, em matéria de sustentação como empresa jornalística — então é um case de empreendedorismo...

Logo, se eu continuar aqui, não acabamos nunca essa lista.

2) Num mercado virtual tão complicado, em que várias iniciativas não permanecem por muito tempo (caso mais recente: o fim do NoMínimo), o que você apontaria como o segredo da longevidade do Digestivo Cultural? Como se sustentar e ficar de pé nesse universo meio selvagem?

O "segredo" maior talvez seja a persistência. Mas eu vou tentar contextualizar mais, porque, naturalmente, não é tão simples assim.

Bom, em primeiro lugar, com o estouro da Bolha, em 2000 mesmo, pegamos uma internet "deserta" — então crescemos num momento em que havia pouca competição (o termo "Web 2.0" é de 2005), em que podíamos errar ainda e corrigir a trajetória depois.

Em segundo lugar, optamos pelo modelo de custo mínimo ou "quase zero" (como se costuma falar). Eu assumi a programação do site, a edição e até alguns textos. Trabalhei em paralelo, com outro emprego, trabalhei muito em casa. Montei o escritório no "ano quatro" do Digestivo, tive profissionais remunerados só recentemente e ainda hoje não conseguimos remunerar todos os nossos colaboradores...

Em terceiro lugar, uma certa "visão", administrativamente falando. Eu sempre briguei muito para que a internet fosse levada a sério no Brasil e continuo brigando com algumas pessoas que ainda acham que ela não é o futuro...

(A tal persistência talvez seja um pouco de teimosia minha, mas funcionou.)

3) O fim do NoMínimo deixou muita gente órfã na internet e pegou a todos de surpresa. Por que sites como ele e o Digestivo (que é exceção) têm essa dificuldade de ficar muito tempo no ar? A internet não é um meio seguro?

Embora o NoMínimo fosse um exemplo em termos de jornalismo na internet do Brasil, ele nunca foi um bom exemplo de internet business, digamos assim. Por motivos que não ficaram muito claros ainda, sua estrutura era caríssima (replicava o modelo da imprensa-impressa, só que não tinha "impressão"), logo, quando o principal patrocinador saiu, o site deixou imediatamente de existir. Em muitos sentidos, era um case de internet pré-Bolha, em que se investia, muitas vezes, a fundo perdido.

A internet exige que o jornalista, ou o dono da publicação, tenha espírito empreendedor, porque, além da parte editorial, ele vai ter de vender a idéia, vai ter de pensar na parte comercial, vai ter de sujar as mãos de graxa (e não só de tinta). Não há uma estrutura pronta, como na imprensa tradicional, portanto, depois de algum tempo, o jornalista típico desiste.

Fora que, no Brasil, muitas empresas jornalísticas foram concebidas, se desenvolveram e se consolidaram atreladas a governos ou a grupos políticos. Conseqüentemente, muitos jornalistas, e até publishers, quando chegam à internet — onde o business plan tem de funcionar — se atrapalham e desistem.

4) A internet é um caminho sem volta? Quer dizer, é inevitável que o melhor da produção de jornalismo migre para o meio virtual? Onde se encaixariam hoje, portanto, as revistas de informação e os jornais impressos?

É isso mesmo; é um caminho sem volta.

Jornalisticamente falando, talvez a internet brasileira ainda não tenha chegado lá. Mas, economicamente, é indiscutível.

Não há como competir com o que é de graça. Os jornalistas e as empresas jornalísticas sabem disso. Então a única chance de manter uma posição no mercado é migrar para a Web.

Eu não gostaria de colocar a resposta só em termos de competição, mas, nos Estados Unidos, em algumas áreas, a melhor informação disponível já está na internet.

Em matéria de tecnologia, por exemplo: não existem jornalistas "de papel", digamos assim, que cubram melhor o assunto do que blogueiros como Michael Arrington, Om Malik, John Battelle, Steve Gillmor.

Alguns deles até tiveram passagens pelo papel, mas a internet os conquistou irreversivelmente. Logo, as grandes marcas de jornais e de revistas têm de fazer a mesma coisa: têm de ser grandes referências na internet também. Porque, fora dela, não vão sobreviver. As novas gerações consomem cada vez menos papel, e todo mundo sabe igualmente disso...

5) A que o meio digital e as novas tecnologias têm obrigado os demais meios (impresso, TV, rádio) a se adaptarem?

Eu não sei se existem tantas mudanças em cada meio específico. Talvez uma mudança de linguagem. Mas a grande mudança, mesmo, é a de migrar para a internet.

Assim como o papel vira site ou blog, o rádio vira podcast e a TV vira webcast, YouTube ou Joost (o que prevalecer). Não existe inovação, hoje, que não passe pela internet. As grandes mudanças são tecnológicas e a internet é uma nova tecnologia, ao contrário do papel, do rádio, da TV...

Os jornalistas têm de se adaptar e as empresas jornalísticas, também. É uma contagem regressiva, lenta para alguns, mas irreversível para todos.

Concluindo: quem escreve, vai ter de aprender HTML e vai ter de blogar; quem "irradia", vai ter de virar podcast e tocar nos "MP3 players"; e quem faz TV, vai ter de entender a audiência do YouTube e a tecnologia de streaming do Joost (a TV digital já é velha perto disso...).

6) Você costuma sempre dizer que entrou no jornalismo pela "porta dos fundos", pois veio de outro ramo (Engenharia de Computação) para criar o Digestivo Cultural. Desde então, assumiu a posição de jornalista e crítico cultural e se imbricou nesse meio. Da sua posição hoje de editor do Digestivo e envolvido no ramo, como caracterizaria o jornalismo cultural feito no Brasil?

É irônico. Eu vim para esta área porque, há dez ou mais anos, admirava os jornalistas culturais e queria ser como eles. Hoje, porém, acompanho cada vez menos — e, daqui a pouco, nem vou poder falar nada porque simplesmente não vou mais saber o que acontece...

Enfim, os problemas são aqueles que tão bem conhecemos (e não são de hoje mas vêm se agravando): matérias burocráticas que parecem simples releases de assessoria de imprensa, apenas para cobrir os lançamentos e eventos; pouca estrutura (gente), pouco tempo (muita pressão) e pouco espaço para analisar e refletir (criticamente); falta de interesse do leitor, da classe intelectual ou artística (que se sente injustiçada pela "cobertura") e de perspectiva (porque nunca foi uma editoria decisiva, a de cultura; e, com a "ameaça" da internet, a grana está cada vez mais curta nas empresas jornalísticas).

Para não dizer que não falei das flores, tem a Piauí, que é excelente (mas que só a família Moreira Salles sustenta). E tem a internet, que é vibrante. Talvez, na Web, não façamos estritamente jornalismo, mas é onde estão as pessoas e é onde, cada dia mais, vão estar. Não tem volta, de novo.

7) Conseguiria traçar um paralelo de diferenças e semelhanças desse jornalismo com relação ao feito em outros países (qualquer um que queira usar de comparativo)?

A crise do papel é geral e não é "culpa" do Brasil, dos jornalistas brasileiros ou das empresas jornalísticas daqui. É "apenas" o fim de algumas tecnologias. E é o fim de uma indústria que viveu muito tempo de vender o suporte junto com o produto (a informação).

Eu acho que as grandes instituições jornalísticas, no mundo, continuam — porque têm uma audiência mundial. Ou seja, o New York Times pode insistir mais, no papel, do que os jornais daqui, porque a sua base de apoio é global.

Em termos de jornalismo, acho que continua o mesmo "gap" de qualidade que sempre houve (com algumas menções honrosas como, novamente, a Piauí). Agora, em termos de tecnologia, eu vejo empresas como a BBC, o Guardian e o próprio New York Times se mexendo mais do que as nossas respectivas daqui.

Ainda assim, nos EUA, alguns analistas defendem que nem as grandes instituições do jornalismo mundial vão conseguir manter a soberania. Segundo os mesmos, a estrutura das redações "off-line" jamais poderá ser sustentada pelo "on-line". Logo, pode não ser, simples e apenasmente, uma questão de migração...

8) Quem seria, hoje e em atividade, bons jornalistas culturais? E do passado, quem você assumiria como influência para o trabalho que desenvolve no Digestivo?

Embora cada vez mais limitados pela atual conjuntura, os melhores jornalistas culturais continuam sendo o Daniel Piza (no Estadão), o Luís Antônio Giron (na Época), o Sérgio Augusto (também no Estadão), o Ruy Castro (de volta à Folha), o Mario Sergio Conti (na onipresente Piauí) e, entre os "novos", o Marcelo Rezende (na Bravo!). Existem outros fora de atividade (fora das publicações) e, na internet, existem dezenas deles — mas, aí, eu sou suspeito para falar...

Do passado, além dos de cima, — eu sou obrigado a repetir — o Paulo Francis. Sobretudo pela cultura. Para não ficar só em nomes — e só em publicações que já citei —, eu diria que sofri influência do jornalismo feito na Senhor, no Pasquim (agora em livro) e até do "Caderno2" (dos anos 80 e 90).

9) Quais os próximos passos (em termos de tecnologia, avanços, perspectivas) para projetos como o Digestivo Cultural, que existem exclusivamente na internet?

Eu acredito que o próximo passo, das publicações on-line, é serem cada vez mais permeáveis aos leitores.

Dou um exemplo, recente, do próprio Digestivo. Acabamos de inaugurar as páginas de "Comentários por Comentador" — e, ao contrário dos mais de duzentos Colunistas e Colaboradores que passaram por aqui, eu descubro que já tivemos quase mais de quatro mil Comentadores! São mais Comentários, em número, do que textos, há alguns anos...

Talvez o próximo passo, editorialmente falando, seja editar os próprios leitores. Já pensou?

Em termos de perspectivas, o ambiente é muito favorável — porque está claro que, ao abrigar cada vez mais pessoas, a audiência da internet (e das suas publicações) cresce cada vez mais. Então cresce a publicidade, crescem as receitas e as principais empresas de internet.

Nos próximos anos, com o eterno retorno do livro eletrônico, vamos assistir a uma revolução nos direitos autorais — e, quem sabe, muitos autores não possam viver do que publicam on-line?

10) E do Julio Borges jornalista, quais os próximos projetos?

Meus projetos se misturam com os do Digestivo, então volto a falar no site...

Tivemos um problema de infra-estrutura, com a nossa antiga empresa de hospedagem, no segundo semestre do ano passado, então a meta, para o curto prazo, é simplesmente manter todas as seções atualizadas: Notas, Colunas, Ensaios, Entrevistas, Blog e Podcast.

Depois, em paralelo, vamos continuar com os Eventos, que inauguramos em 2007. Se tudo se confirmar, vamos continuar discutindo a internet brasileira, com os principais protagonistas ao vivo (depois, no site, em áudio), e vamos realizar uma série inteiramente nova sobre literatura brasileira contemporânea, junto com a principal publicação literária brasileira. (Ainda nesta parte "presencial", eu dou uma aula em abril, no espaço da Revista Cult, sobre esses dilemas internéticos entre editores e leitores...)

Acabei de inaugurar uma coluna, misturando internet e business, na revista GV-executivo (nossa velha Parceira) — e eu arriscaria uma incursão futura, do Digestivo, em internet business.

Por fim, desde o Kindle (o novo "leitor" da Amazon), voltou a me assaltar a idéia de uma editora em PDF e uma porção de outras idéias para livros...

Como diz o Carpinejar, gosto tanto do que faço que "posso me esgotar fisicamente sem perceber"...

Nota do Editor
Entrevista concedida a Marcelo Miranda, do jornal O Tempo, de Belo Horizonte. Originalmente publicada em 17/2/2008.

Julio Daio Borges
22/2/2008 às 12h08

 

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