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Quinta-feira, 28/7/2005
Milton Hatoum na Casa do Saber
Julio Daio Borges

Em 2000, eu tive um amigo virtual que nunca cheguei a conhecer pessoalmente. Ele tinha mais de cinqüenta anos, sofria do coração desde criança e faleceu naquele ano. Mas nós nos correspondemos intensamente. Ele veio a cair na minha lista, penso, por causa do Daniel Piza (mais uma vez). Esse meu amigo lia meus textos avidamente e, um dia, virou-se para mim (virtualmente) e proclamou: "Hoje terminei de ler tudo o que você escreveu". Nunca me esqueci. Seu nome era Valdir Sarubbi.

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O Sarubbi tinha um amigo escritor. Escritor de verdade, não escrevinhador de internet como eu. Disse que, certo dia, esse amigo aportara em sua casa e falara que, no Brasil daquela época (não tão distante), faltava "indignação". A palavra era batida e não me impressionou. O Sarubbi falou muito bem desse seu amigo, disse que era um escritor muito promissor. E indicou a ele o meu site. Do mesmo modo que o amigo escritor do Sarubbi não me impressionou com a palavra "indignação", eu não o impressionei com o meu site. Ficamos empatados. Era o Milton Hatoum.

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De lá pra cá, tenho acompanhado o Milton Hatoum à distância. O Daniel Piza, por exemplo, sempre fala dele. E — justiça seja feita — desde a Gazeta (antes de 2000). Uma vez, em um lançamento seu, o Daniel me apontou o Milton Hatoum. "Olha, estão aí o Milton Hatoum, o Marçal Aquino..." E eu o vi mas não me aproximei. Ia dizer o que? Também vi o Marçal Aquino, bem diferente das fotos... mas, igualmente, ia dizer o que? Felizmente logo chegou o Eduardo Carvalho, um dos meus fiéis escudeiros, e passamos quase toda a noite conversando sobre o Ruy Castro (naquele dia eu havia telefonado pra ele).

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Outro ponto de encontro entre eu e o Milton Hatoum é a Flip. Em 2004, soube que ele ministrava as oficinas e tentei ver, mas foi tarde demais. (Tentei, também, encontrar o Augusto Sales, mas essa foi outra história...) Este ano, o Milton Hatoum zanzava por ali, também na condição de marido da Ruth Lana, a organizadora. Eu o via sempre assistindo às palestras (ou às "mesas") atentamente, respeitosamente, como se fizesse anotações... E era parado nas ruas, provavelmente por ex-alunos, ou candidatos a "alunos", e parecia sempre muito cordial com as pessoas.

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Quando soube que o Milton Hatoum daria, na Casa do Saber, um "Seminário Sobre o Romance", eu estava lendo Os Segredos da Ficção, do Raimundo Carrero (da Agir; também por influência da Flip). Pensei que seria instrutivo comparar os dois professores (e os dois métodos). Quase não consegui fazê-lo. O pessoal da Casa sempre me falava que o curso estava lotado, que havia lista de espera... Mas acabou, no fim, dando. E, ontem, lá fui eu para a minha primeira aula. Eu, o Eduardo (claro) e mais um amigo dele — o "Palhinha" — igualmente, como nós, um escrevinhador.

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O Milton Hatoum fala muito bem e, em poucos minutos, conseguiu envolver toda a transbordante sala em sua fala. A primeira metade foi extremamente sóbria e ele ficou discutindo teorias do romance. Teorias no bom sentido. Descobri que foi arquiteto da FAU e, num cacoete, esboçou, no quadro, uma árvore, um arbusto e uma palmeira. Disse que eram, respectivamente, o romance, a novela e o conto. O romance, como uma árvore frondosa, estruturado num eixo e ramificando-se em várias direções; a novela, como um arbusto, baixa em estatura, tensa e escura; o conto, como uma palmeira, magro, despojado, nu.

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O segundo tempo (não tomei vinho, no intervalo, com ele) veio mais solto e o Milton Hatoum, dadas as perguntas, quase que teve de descer das alturas em que se encontrava. A mudança foi de Gustav Flaubert para Arnaldo Jabor (mas apenas por alguns minutos). Uma aluna queria saber o que ele, Hatoum, achava do fato do romance estar perdendo espaço para outros gêneros, como a crônica. Ele não se abalou e reafirmou que, realmente, um cronista sempre vai ser mais lido do que um romancista (não sei se concordo). E, incisivamente, lamentou que o Jabor fosse muito melhor cineasta do que cronista e que ficasse, a seu ver, sempre preso aos moldes dos anos 60. "O Jabor faria melhor se escrevesse um livro de memórias", completou.

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Ainda na categoria "perguntas desconcertantes", surgiu alguém com a seguinte questão: "Você falou em romance, em novela, em conto... E a poesia, onde entra em tudo isso?". A meu ver (e também na opinião do Eduardo e do "Palhinha"), o Milton Hatoum deveria ter respondido assim: "A poesia? Eu é que pergunto!", mas foi cordialíssimo — e, falando de ritmo, tentou encaixar a poesia num curso de prosa. Na saída, lembrei aos meus amigos que, na época em que eu prestava vestibular, muita gente — mas muita gente mesmo — se atrapalhava porque não sabia o que significava ter de "escrever uma redação em prosa". Ficamos bolando, de brincadeira, perguntas que desconcertariam o Milton: "E o Arnaldo Antunes, onde entra em tudo isso?"; "E a buzina do Chacrinha?"; "E as balas Juquinha?".

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O curso promete. Milton Hatoum passou sugestões de leitura inspiradoras. Dois contos de Machado de Assis; um híbrido (entre o conto e a crônica) de Euclides da Cunha; O Coração das Trevas de Joseph Conrad; e ainda, para completar, Palmeiras Selvagens de William Faulkner. Eu perguntei a ele, durante a aula, fugindo um pouco do assunto (ma non troppo), porque ele — Milton Hatoum — não praticava mais o gênero crônica. Disse que pratica, agora, mensalmente, na revista Entrelivros (aliás, eu observei, quando do lançamento do primeiro número, que ele era uma das melhores coisas da revista). Disse que admirava o Verissimo por tirar, todos os dias, um assunto para escrever "do limbo"... mas não o senti muito inclinado a ser cronista de jornal. Eu, o Eduardo e o "Palhinha" concluímos que a literatura (o fazer literário) talvez viva melhor sem o jornalismo (sem a prática do jornalismo). De qualquer modo, é uma pena que os jornais estejam perdendo um cronista desse nível. "Um cronista promissor", como diria o meu amigo Valdir Sarubbi.

Julio Daio Borges
28/7/2005 às 09h20

 

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