COLUNAS
Quinta-feira,
17/7/2003
Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada
Nanda Rovere
+ de 6500 Acessos
Todos que me conhecem sabem quanta admiração eu tenho pelos nossos artistas que dedicam a sua vida ao teatro. Nada me deixa mais feliz do que ir ao teatro e assistir montagens interessantes que unem reflexão com diversão, e atores de talento! "Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada" com o grupo Os Fofos Encenam foi um desses espetáculos.
Quinta, dia 26 de junho, eu fui ao Sérgio Cardoso imaginando que veria um espetáculo de qualidade e não me decepcionei!
"Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada" é um espetáculo simples e, provavelmente isso é um dos seus maiores méritos.
O cenário é composto basicamente por uma cama que serve de objeto de cena para quase todas as esquetes, a luz e o figurino são simples, mas bem elaborados, e se encaixam muito bem nas cenas. O texto, de autoria de Newton Moreno, trata de uma maneira inteligente as tristezas, alegrias, relacionamentos, etc., dos homossexuais. São seis esquetes (cenas curtas) que nos remetem a um assunto pouco comentado, mas que merece toda a nossa atenção.
Algumas cenas são hilárias, outras retratam a realidade homossexual, muitas vezes dura e sofrida diante da incompreensão de muitas pessoas.
O primeiro esquete mostra ao espectador o encontro de um casal nos dias de hoje. Quando eles estão quase se beijando, um barulho atrapalha a demonstração de afeto. Esta cena é uma das mais criativas da montagem e se repete várias vezes, servindo de ligação entre as diferentes histórias que são contadas.
O mais interessante é que o texto é sempre o mesmo, mas as cenas se passam em diferentes épocas: Atual, em 1964, Cangaço, escravidão (relacionamento entre um negro e o seu "sinhozinho") e descobrimento do Brasil (relacionamento entre um índio e um Português). Na segunda cena "A Paixão de Valdeci", um programa de rádio (Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada) conta a história de um homem bastante afeminado que se contenta em ouvir o amor de sua vida, seu vizinho que é heterossexual, transando com mulheres.
A hipocrisia da Igreja também está presente no texto. Em "O Confessionário", um jovem tenta obrigar um padre gay (ameaçando denunciar a sua homossexualidade), a perdoá-lo pelos seus pecados. Na cena seguinte, denominada "A Primeira Vez", um homem é torturado por perseguir homossexuais.
A Aids e o amor na terceira idade estão presentes nas últimas cenas, "O Paciente" e "I'm Getting Sentimental Over You"; respectivamente. Numa cama de hospital um homem enfrenta o preconceito de uma enfermeira revoltada por ter que cuidar de doentes soropositivos. Para finalizar o espetáculo, entram em cena dois velhinhos, onde é tratado o amor, o companheirismo e a importância de um beijo no relacionamento.
A cena é interessante porque reflete sobre a dificuldade dos casais homossexuais se beijarem em público, em virtude do grande preconceito existente. No palco há um beijo entre os personagens e o que poderia ser chocante, nos toca porque é uma demonstração de carinho!
Falar separadamente sobre o trabalho de cada ator é correr o risco de cometer injustiça, pois todos são maravilhosos e merecem todos os aplausos! Texto, direção e atores estão em harmonia!
Eu acredito que se os relacionamentos homossexuais fossem mais discutidos, mais facilmente as pessoas perceberiam que o importante é a dignidade, o amor e o respeito entre as pessoas, não a opção de vida de cada um! Num mundo onde muitas pessoas desrespeitam o próximo, nada mais gratificante do que ver temas considerados "polêmicos" serem tratados pelos nossos artistas.O teatro é certamente um espaço excelente para proporcionar ao público temas como esse.
O espetáculo estreou em 2001, inaugurando um novo espaço no TUSP à meia-noite. O sucesso do espetáculo foi grande em virtude da propaganda boca-a-boca, proporcionando à montagem temporadas de sucesso nestes últimos dois anos. Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada conquistou um público que não é necessariamente de homossexuais; são pessoas interessadas num teatro que contribua para o enriquecimento cultural do ser humano.
Em 2001, participou do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, Festival Nacional de Teatro de Recife, e em 2002, do FENARTE - Festival de Teatro do João Pessoa.
O grupo Os Fofos surgiu no curso de Artes Cênicas da Unicamp no ano de 1992, mas com a sua nova formação contam com a colaboração de artistas paulistanos.
Um nova montagem do grupo, denominada, A Mulher do Trem, tem estréia programada para final de julho. A estética do Circo Teatro estará presente nesse novo trabalho, com direção do ator e diretor Fernando Neves. A Mulher do Trem, comédia francesa do século XIX, estreou em 1920 no Circo Colombo, mantido pelo avô de Fernando.
Quem ainda não assistiu Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada tem até o dia 31 de julho para conferir e, certamente, sair do teatro com vontade de lutar por um mundo mais justo.
Vida longa a esse grupo que se preocupa em realizar um trabalho de qualidade e encanta pelo seu talento!
Para ir além
Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada
Teatro Sérgio Cardoso
Rua Rui Barbosa, nº 153 - Bela Vista
Telefone: 11 - 288 0136.
Nanda Rovere
São Paulo,
17/7/2003
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Charges e bastidores do Roda Viva de Diogo Salles
02.
Elvis, o genial filme de Baz Luhrmann de Jardel Dias Cavalcanti
03.
Notas confessionais de um angustiado (V) de Cassionei Niches Petry
04.
O Quixote de Will Eisner de Celso A. Uequed Pitol
05.
Um software em crise existencial de Wellington Machado
Mais Acessadas de Nanda Rovere
em 2003
01.
Patrícia Melo mergulha no ciúme e na loucura - 15/9/2003
02.
O Diário de Anne Frank - 6/10/2003
03.
Ler é entrar num mundo de sonhos e descobertas - 13/10/2003
04.
Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada - 17/7/2003
05.
Grupos de teatro do Rio e de São Paulo em Paraty - 25/8/2003
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|