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Segunda-feira, 10/11/2003
Um brasileiro no Uzbequistão (VIII)
Arcano9
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A madrassa Shar Dor, do Registan, ao sol do anoitecer

Samarkand, 08.06

O sol das sete e vinte da noite tem uma personalidade instável, mas empresta magia a tudo que ilumina. Incide sobre os mosaicos, e os transforma. A cada minuto, a luz se enfraquecendo passa de branca a amarela, de laranja a vermelha, de roxa a azul escura, à cor da noite estrelada. O processo molda o Registan. É como se a cada segundo existisse um novo conjunto de prédios. Os olhos não fecham, e se isso se torna inevitável, qualquer piscada parece demorar demais.

O Registan. Para muitos, o mais perfeito conjunto arquitetônico muçulmano do planeta. O símbolo de Samarkand são essas três madrassas ao redor de uma praça de mais ou menos 200 metros quadrados. Duas das madrassas estão frente a frente, e a terceira está entre elas, fazendo um quadrado incompleto cujo centro é a praça. Cada madrassa tem um alto portal coberto por mosaicos coloridos. Quando é amanhecer, o sol incide diretamente sobre a primeira e mais antiga delas, a madrassa Ulugubek, construída em 1420. Quando é meio-dia, o sol fica de frente à madrassa do meio, a Tilla-Kari, de 1660. Por fim, no anoitecer, o prisma da luz amarela, laranja, vermelha e roxa é a terceira, a Shar Dor, de 1636. Seus portais têm aproximadamente 20 metros de altura, o suficiente para te deixar com câimbra de olhar para cima. Por ironia, não foi obra do sanguinário Tamerlão - que fez de Samarkand sua jóia mais preciosa, o seu maior legado, seu maior orgulho. Foi obra de seus sucessores, filhos, netos, que fizeram valer a frase que ordenou que fosse escrita em um dos portões da cidade: "Se duvidais de nossa potência, contemplai nossa arquitetura". O vento quente sopra.

Contemplo. Detalhe folheado a ouro do interior da madrassa Tilla-Kari

Havíamos chegado a Maracanda (como Alexandre, o Grande, chamava a cidade) por volta das 18h, ao final de quase um dia inteiro dedicado à jornada de ônibus a partir de Bukhara. Embarcamos às 11h da manhã, em um ônibus em estado lastimável, com janelas quebradas, imundo. Acho que o estado do coletivo me chamou mais a atenção desta vez do que quando fizemos a viagem de Urgench a Bukhara, porque daquela vez era de noite e estava cansado. Com o dia claro e radiante, percebi como o nosso estava mal, mas por incrível que pareça, encontramos outros no caminho ainda piores. Por isso mudei de idéia, e comecei a ver a viagem diferentemente: a partir de então, nosso ônibus era um bólido de fabricação húngara, novíssimo e ágil, engolindo quilômetros entre duas das principais cidades da Ásia central.

Estrada monótona, contudo: paisagens rurais, como as do interior do Brasil. Áreas de cultivo de algodão se estendendo por quilômetros, pessoas muito pobres trabalhando a terra, vacas curtidas pelo sol do Deserto do Kyzylkum. A imensa quantidade de bloqueios policiais e outdoors com frases do presidente Islam Karimov também foi um lembrete constante de que o Uzbequistão é um país à beira de um ataque de nervos, à beira de uma explosão social. Karimov zela pela triste tradição no país - que as pessoas não saibam o que não devem saber, e que saibam que está tudo ótimo. Seus cartazes carregam as cores nacionais do país, verde, azul e branco, e sua foto. Estão não apenas nas estradas, mas também em hospitais, mercados, madrassas, prédios históricos e escolas. Em ambientes com estudantes, ele é sempre o grande professor. Suas frases mostram que está preocupado com o fato de que a juventude tem a missão de manter o país no curso glorioso que ele estabeleceu. Curso glorioso: esmolando verbas americanas em troca do estabelecimento de bases militares em seu território. Deixando a tuberculose devastadora tomar a região do moribundo Mar de Aral. Mantendo taxas altíssimas de analfabetismo e domando descontentes com centenas de soldados nas estradas e ruas, com metralhadoras em punho. Prendendo oposicionistas, acusando-os de serem extremistas islâmicos. Os problemas do Uzbequistão não chegam perto dos problemas do Brasil. Mas, se há um ponto em comum, é a qualidade das estradas: esburacadas, sem iluminação, com placas caindo aos pedaços.

Uma metáfora. Para chegar à Eldorado do Centro da Ásia, é preciso vencer os quilômetros que separam o ocidente do oriente. Que separam o facilmente acessível do remoto, obscuro, aparentemente inalcançável. Quilômetros difíceis, quilômetros confusos, quilômetros que intimidam - mas quilômetros dourados, cujo resplandecer atravessou séculos de mistério, que não diminuiu depois da morte de Tamerlão, com a decadência da rota da seda, com Stálin ou Karimov. Mistério cantado em verso em 1913:

We travel not for trafficking alone,
By hotter winds are fiery hearts fanned.
For lust of knowning what should not be known,
We take the Golden Road to Samarkand.

- Elroy Flecker, The Golden Road to Samarkand

* * *

Samarkand conjures no earthly city. It is a heart-stealing sound. Other capitals of Islam - Cairo, Damascus, Istanbul - glow with an acessible, Mediterranean magnificence. But Samarkand inhabits only the edge of geography. It rings with a landlocked strangeness, and was the seat of an empire so remote in its steppe and desert that it only touched Europe to terrify it.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia

Khiva tem cor de barro seco, com sua muralha grandiosa protegendo a herança do império de Khoresm em Ichon-Qala. Bukhara tem a mesma cor, mas também o azul celeste da Madrassa Mir-i-Arab ou os mosaicos dos prédios ao redor da Labi-Hauz. Samarkand é o estagio final da transição: o azul nas cúpulas transmuta-se no multicolorido dos mosaicos e no dourado dos interiores como se tudo fizesse parte do mesmo tecido em dégradé. Se Khiva é a cidade dos mercadores de escravos e Bukhara, o "Pilar do Islã" dos persas samanidas, Samarkand é obra de um só homem: Tamerlão. Nascido em Shakhrisabz, não longe da cidade, o sábio sanguinário ergueu seu império das cinzas deixadas por Genghis Khan. Samarkand surgiu por volta do século V a.C., já era um centro desenvolvido, cercado por uma muralha, por ocasião da chegada de Alexandre, o Grande, em 329 a.C. Pouco sobrou da então Maracanda, algumas ruínas escavadas por arqueólogos, mas é difícil imaginar o que pode ter levado Alexandre a ter dito sua frase que, hoje, carrega igual peso histórico e mítico. O conquistador teria dito que "tudo o que ouvi sobre Maracanda é verdade, exceto pelo fato de que é ainda mais bonita do que eu jamais imaginei".

O domínio sucessivo de vários clãs e povos foi encerrado por Genghis Khan no século XIII, mas se o mongol transformou em pó tudo que existia de glorioso em Samarkand até então, foi apenas abrindo caminho para Tamerlão, que escolheu a cidade para ser a capital de seu império, em 1370. Numa espetacular seqüência de batalhas que durou nove anos, ele chegou a controlar, em 1395, o território correspondente hoje ao Irã, Iraque, Síria, Turquia oriental, a região do Cáucaso e o norte da Índia. Embora tenha seguido o estilo aterrorizante de Genghis Khan ao supervisionar pessoalmente as cidades que conquistava virarem ruínas e as cruéis execuções e pilhagens, duas coisas o diferenciaram bastante de Genghis. A primeira era a sua própria origem - Tamerlão era de uma tribo de origem turca, sedentária, e não mongol, povo essencialmente nômade. Isso pode ter colaborado com seu interesse por arquitetura e artes em geral, a segunda diferença entre os dois conquistadores. Se Genghis era um sanguinário impiedoso, o mesmo não pode ser dito de Tamerlão, porque se sabe que ele ao menos poupava da morte os artesãos. Quando os encontrava, mandava-os para Samarkand, para usar os seus talentos na edificação de um tesouro que iria imortalizá-lo como o maior de todos os líderes. A duplicidade assassino/mecenas é paradoxal, mas é essa ambivalência a maior definição do que é Samarkand.

Uma das cúpulas da mesquita Bibi-Khanyn

Ainda hoje Samarcanda estonteia por sua beleza única e perfeição das formas criadas pelos gênios das artes plásticas. Cada construção era supervisionada por Tamerlão, dotado de um gosto magnífico. Pesava as variações de diferentes ornamentos, atentava para a delicadeza do desenho e limpeza do traço. Em seguida, lançava-se outra vez no sorvedouro de novas expedições, em carnificinas: sangue, fogo, gritos.
- Ryszard Kapuscinski, Imperium

Ao lado do bazar de Samarkand, um monumento em ruínas seria ironicamente o maior orgulho de Tamerlão - ou melhor, de sua esposa chinesa, Bibi-Khanyn. Trata-se de uma mesquita do século XIV, que tem todos os elementos da arquitetura do conquistador - as cúpulas azuis, os mosaicos. A diferença, nesse caso, é que tudo parece ter sido projetado quase duas vezes maior do que o normal. O portal, por exemplo, tem 35 metros de altura. Recentemente reformado com a ajuda da Unesco, ele é tão alto que e difícil acreditar que existisse tecnologia e conhecimento suficientes para fazer uma obra dessas há quase 700 anos.

A história por trás da mesquita Bibi-Khanyn explica a atmosfera de melancolia que se sente ao ver tantos recursos desperdiçados e destruídos, numa edificação que teria sido tão grandiosa. A Bibi-Khanyn nunca foi terminada. Há paredes que guardam espaços vazios para mosaicos grandiosos, inscrições árabes estilizadas, e o azul celeste de Tamerlão. Mas não há nada - só o vácuo, paredes nuas, cúpulas ocas e etéreas que ecoam o vento e o barulho distante do bazar. Acredita-se que Bibi-Khanyn tenha encomendado a construção da colossal mesquita - certamente a maior de todo o Uzbequistão e uma das maiores do mundo - como uma surpresa para seu marido, enquanto ele estava viajando. Ela encarregou um arquiteto de projetar a mesquita e lhe explicou o que queria. Durante o processo, quando Bibi ia pessoalmente supervisionar as obras, o arquiteto teria se apaixonado por ela. E, quando as obras estavam entrando na reta final - quando só faltavam os detalhes artísticos nas paredes e nos tetos, ele se recusou a continuar. Disse a Bibi que só completaria a obra se ela lhe desse um beijo. E foi atendido. Aparentemente, porém, o beijo fez a cabeça do arquiteto flutuar pelas nuvens. Ele se descuidou, não sumiu com as evidências, e Tamerlão, ao retornar, descobriu o que havia ocorrido. Não se sabe se o conquistador usou ou não as vísceras do pobre infeliz como adubo para as rosas no pátio interno da mesquita, mas o arquiteto não teve muita chance de se explicar. A obra foi então paralisada. E Bibi, a amada rainha que só queria fazer uma surpresa a seu marido, foi forçada a usar véus pelo resto da vida. Ela foi enterrada num monumento em frente à mesquita incompleta - e bem longe de Tamerlão, o conquistador traído pela arte que tanto protegeu.

(Continua aqui)


Na estrada dourada para Samarkand



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