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Quarta-feira, 5/3/2003
O gênio, e alguns assuntos menos elevados
Adrian Leverkuhn
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É claro que, quando tal assunto é abordado, o é sempre com conotações éticas maiores - que não vou repetir aqui, por respeito à inteligência dos leitores - mas a verdade é que quanto mais uma pessoa se dedica a alguma coisa, quanto mais energia ela despende na busca por uma habilidade, menos humana ela parecerá aos outros. Quantos não foram, por exemplo, os músicos cujas habilidades foram atribuídas a pactos com o demônio, de Niccolo Paganini a Robert Johnson, e quantas lendas não correm sobre grandes cientistas e pesquisadores que, verídicas ou não, servem apenas para reiterar como eles eram pessoas "estranhas", anedoticamente assegurando que eles não eram, em essência, pessoas como nós? Ou a heteronímia de Pessoa, que, em anos recentes, vem sendo manchada com a acusação de que Pessoa sofria de transtorno dissociativo de personalidade, esquizofrenia ou seja lá o quê - que, verdade ou não, tem apelo imediato, dadas as dificuldades de se aceitar que um ser humano possa ter imaginado e construído tudo aquilo. E não se trata, também, apenas da exibição da força: a própria presença de tais pessoas, conversar levianamente com elas, já é o suficiente para que uma leve sensação de estranheza nos acometa, que virá apenas a ser confirmada mais adiante.

Como de costume, os orientais já tinham e expressaram uma consciência de tal fenômeno: entre os japoneses, a prática da poesia era um michi (ou um dô: o ideograma é lido de forma diferente dependendo da utilização), um caminho para a elevação espiritual; mas também o eram as artes marciais (bushidô), a arte da jardinagem (kadô) e mesmo a arte de preparar chás (sadô). Não se dá, obviamente, que o chá, ou as flores, ou a luta, e provavelmente não a poesia, que seriam responsáveis pelo enriquecimento espiritual, mas a dedicação em se entender algo por completo, de dominar uma arte, que faria o praticante diferente de todos os outros. É bom lembrar que as religiões eram também referidas como michi/dô, como o budismo (bustudô) e o shintoísmo (shintô), colocando a religião e a jardinagem no mesmo patamar!

Ou, por outro ângulo: Otto Weininger, em seu hoje injustamente desprezado Sexo e Caráter, delineia um entendimento do gênio (palavrinha que eu estava evitando até agora) como uma característica distinta e independente do talento: um matemático, por exemplo, pode ter um grande talento mas não ser um gênio, e com isso dominará todos os problemas de sua área; Novalis, por sua vez, teria sido um gênio sem nenhum grande talento em particular. A genialidade, para Weininger, consistiria em "originalidade, individualidade e um estado de produtividade geral". O gênio seria, ademais, uma pessoa que tivesse "todas as outras pessoas dentro de si", e ele cita o exemplo de Goethe, que certa vez disse que não havia um único crime, um único vício cuja tendência para qual ele não fosse capaz de reconhecer em si mesmo, e, em algum estágio de sua vida, de entender completamente. O gênio não é uma condição de saber as coisas, mas sabê-las intuitivamente, "sem as ter aprendido".

Nosso tempo, que não acredita em pactos com o demônio, precisou negligenciar também o mito do gênio. Há acadêmicos que respondem com agressividade descomunal, mesmo para acadêmicos, sempre que farejam alguma referência à genialidade - e o farejam de tal distância que o observador desatento não entenderá o rompante de ódio. Mas mais do que uma simples forma de lidar com a estranheza, a perseguição à própria idéia de gênio tem raízes mais profundas: o mito do gênio é o próprio mito do Indivíduo, da pessoa autônoma que se separa da massa para tornar-se melhor que ela (algumas vezes até por um fardo que não se deseja do que uma escolha), e que mantém uma relação distante, mesmo que respeitosa, com seus concidadãos. É, ademais, um indivíduo mais importante que a massa: capaz de, sozinho, causar impactos históricos mais significativos do que a lenta e fatalista luta de classes e conceitos parecidos, e que pode continuar estando certo mesmo quando a turba se volta contra ele. Não é de se estranhar que os românticos tenham se apaixonado por gênios, e que hoje se persiga o próprio conceito, não porque se o tenha descoberto inútil ou incorreto, mas por sua incompatibilidade com o coletivismo vigente.

O mito do gênio se espalha e ressoa em vários outros mitos: é o Fausto, em todas as suas versões, por mais distintas entre si; tem seu negativo irônico na figura teatral do Louco, que, diferente de todos os outros e incapaz de tocá-los (afinal, quem levará a sério a opinião do louco?), usa sua singularidade e isolamento para ver as coisas mais nitidamente que os demais, e dizer o que eles não ousam dizer; e, modernamente, o mito sobrevive no super-dotado, encontrando nele uma versão infantil de tudo aquilo que ele representava para o adulto (e a União Soviética, por muito tempo, desperdiçou muitos de seus melhores talentos por se recusar a admitir que tais crianças existiam). Mas aqui já se aprofunda mais, e se escorrega lentamente do tema para enraizamentos distantes.

Mélies
George Mélies foi um cineasta e ilusionista francês, apontado freqüentemente como o grande precursor do cinema de efeitos especiais que se tem hoje etc; sua produção alcança seu auge entre 1899 e 1905, e estiola-se a partir de então, sem assimilar as mudanças na utilização do meio que ocorriam no período. Quando se olha para Mélies hoje (quando eu olho, pelo menos) vê-se um trabalho ainda divertido, inventivo, mas que não é, rigorosamente, o que se chamaria de cinema. Delicia-se com a cabeça que infla e murcha - que na verdade, percebe-se de imediato, é apenas uma cabeça da qual a câmera se aproxima e afasta - com o rei na carta de baralho saindo do baralho, com criaturas aparecendo e desaparecendo em explosões de fumaça, a mobília de um quarto toda saindo de uma mala - e compreende-se que se está diante de um mágico, não de um cineasta, e que o que se assiste é mágica em rolos de filme, não cinema. O sonho de todo ilusionista: com técnicas simples, realizar efeitos antes apenas imagináveis, sem risco de erro, liberto das limitações não só do palco ou de suas próprias habilidades, mas das limitações do próprio mundo físico - fazer não apenas o assombroso, mas o rigorosamente impossível; não truques, mas verdadeira mágica. Em Mélies, os cenários e argumentos extravagantes são apenas pretextos para sua magia: o que mostra até onde é possível ir na criação em um novo meio sem entendê-lo, ou buscar entendê-lo, mas apenas estender os antigos para dentro deles. Há, claro, exceções, como a onicitada Uma Viagem à Lua, com sua rápida sucessão de eventos e imagens fantásticas, transcendendo o mágico por trás dela - ou, melhor dizendo, libertando completamente este mágico, levando sua fantasia à exaustão lógica, distante das convenções do palco e da apresentação. Além disso, acomete-me uma profunda e inexplicável tristeza diante da sociedade de astronomia incoerente: a mesma tristeza que me dá, nas cenas mais felizes, o Fausto de Murnau.

Cronenberg
"e quanto ao 'remodelamento do corpo humano pela tecnologia moderna', eu pensei que este era o seu plano?"
"Ah, isto é só um conceito tolo de ficção científica, que flutua na superfície e não ameaça ninguém. Eu uso para testar a capacidade de recuperação de meus parceiros em psicopatologia"
(em Crash)

O "remodelamento do corpo humano pela tecnologia moderna" parece tirado de uma crítica de um filme de Cronenberg (e capaz que tenha sido, mesmo) e saboreia-se a ironia de tal comentário saindo da boca de Vaughan, guia do protagonista em sua exploração e, com um pouco de ousadia, alter-ego do próprio diretor. Cronenberg nos deu a melhor representação cultural do que seja o "remodelamento do corpo humano pela tecnologia moderna", no conjunto de sua obra. Preste atenção, que ele está falando com você: seus filmes não são só sobre a relação entre corpos e tecnologia, tentem enxergar alguma outra coisa. Ele sabe que vocês conseguem.

Mais Cronenberg
Ah, sim, e A Mosca. A Mosca é o melhor teste que existe para determinar se alguém que diz gostar de cinema realmente sabe o que está dizendo. Porque há "filmes de arte" que já dizem de cara, e insistem em repetir a cada cena, seu status de filme de arte. Há filmes banais que também fazem isso, o que é bastante incômodo. A mosca de Cronenberg faz o contrário: ela tenta, a todo momento, te convencer que é um filme banal, superficial, vulgar, um atentado bobo ao estômago de modernetes impressionáveis. Não é. Por baixo de todos os trapos, esconde-se um dos filmes mais inteligentes, mais profundos, e com maior maestria técnica no cinema recente. Exponha seu amigo moderninho à mosca, ou pergunte o que ele acha dela - uma vez que é um filme que todo mundo já viu - e tens uma forma infalível de determinar se ele está lá pela experiência total e o conteúdo ou se ele prefere flutuar na superfície e na aparência.


Adrian Leverkuhn
Brasília, 5/3/2003

Quem leu este, também leu esse(s):
01. Brasil em novo tempo de cinema de Humberto Pereira da Silva
02. Elogio ao cabelo branco de Ana Elisa Ribeiro
03. Infeliz ano novo de Guilherme Conte
04. Google: utopia ou distopia? de Gian Danton


Mais Adrian Leverkuhn
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