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Terça-feira, 20/5/2003
The Matrix Reloaded
Nemo Nox

Jesus Cristo era adorado como salvador da humanidade e podia trazer os mortos de volta à vida. Super-Homem podia voar acima dos edifícios e salvar a mocinha no último momento. Neo, também conhecido como mister Anderson, pode fazer tudo isso e muito mais. É o protagonista de The Matrix Reloaded (EUA, 2003), dos irmãos Wachowski, seqüência do mega-sucesso The Matrix.

Por trás de todas as perseguições de automóveis e todos os combates de kung fu de The Matrix Reloaded, espreita um subtexto metafísico que oscila entre simbolismos e platitudes. Neo (Keanu Reeves) é o messias da profecia que determina a vitória da humanidade sobre as máquinas que dominam o planeta. No primeiro episódio da trilogia, ele morre e ressuscita mais poderoso para continuar sua missão de salvador. Na coleção interminável de alusões bíblicas, sua companheira chama-se Trinity, seu despertar passa por uma espécie de pia batismal e sua jornada esbarra num seguidor que, como Judas, o trai. Mas as referências metafísicas não se limitam ao cristianismo. A mitologia greco-romana, por exemplo, também se faz presente, de Morpheus, deus dos sonhos, a Persephone, esposa do rei do inferno. E o tema principal dos filmes, a liberação da mente da ilusão que tomamos como realidade, é essencialmente budista. Claro que, como neste universo ficcional está provado que existe um véu ilusório (a matriz do título, espécie de ambiente virtual levado a extremos de verossimilhança, uma SimCity que atingiu a perfeição) encobrindo o mundo real, qualquer comparação com as nossas vidas pode ser no máximo para efeitos poéticos, já que nunca tivemos qualquer indício concreto do mesmo tipo de ilusão.

Um dos problemas de The Matrix Reloaded é estender ao mundo real características do mundo simulado. Faz sentido um personagem ter poderes sobrenaturais dentro da matriz, resultantes da sua habilidade de manipular os bits e bytes que compõem aquele universo. Não faz sentido esse mesmo personagem ter tais poderes fora da matriz, onde seu corpo meramente humano está sujeito não às normas alteráveis de um programa de computador mas às leis inalteráveis da física. E se pode haver oráculo e predestinação na lógica pré-programada da matriz, profecias e falta de livre arbítrio não se encaixam na realidade fora do computador.

Algumas idéias inspiradas no funcionamento de computadores adaptam-se muito bem a The Matrix Reloaded, como por exemplo o uso de backdoors, entradas pelos fundos que servem ao mesmo tempo como atalho e para burlar mecanismos de segurança. Outras são desastrosas, como por exemplo o agente Smith replicando-se em centenas de agentes Smith. Do ponto de vista dramático, um é melhor que muitos, e a multiplicação dilui o impacto do vilão. E não só o agente Smith aparece em numerosas versões, mas também muitos outros vilões são incorporados à galeria, quase todos programas de computador que se recusaram a morrer, antepassados dos eficientes agentes da matriz, incluindo um francês amoral (Lambert Wilson), uma italiana voluptuosa (Monica Bellucci, com decote desafiando a lei da gravidade), e gêmeos rastafaris albinos (Adrian e Neil Rayment).

O roteiro é desigual, não só na alternância entre longas cenas de discussões metafísicas (Neo e o Oráculo, Neo e o Arquiteto, etc) e longas cenas de ação com efeitos especiais (a perseguição na auto-estrada, a luta com os multiplos agentes Smith, etc) mas também na qualidade dos diálogos, que variam entre o divertidamente profano (particularmente a torrente de obscenidades em francês proferida por Lambert Wilson) e o deprimentemente óbvio (particularmente o previsível "algumas coisas nunca mudam, outras coisas mudam", que parece ter saído dos piores momentos de A Ameaça Fantasma).

Pode ter havido muita criatividade na elaboração das cenas de ação (e muito dinheiro: só a seqüência da auto-estrada custou cerca de quarenta milhões de dólares, o suficiente para produzir um filme de médio porte), mas faltou inspiração na resolução: duas situações graves se resolvem identicamente, com Neo voando em alta velocidade e resgatando no último instante os personagens em perigo. Essa nova habilidade de vôo do protagonista parece sempre um mecanismo artificial para resolver conflitos. Em outro exemplo, ele luta contra um exército de agentes Smith durante vários minutos antes de sair voando para longe do seu alcance. Se podia escapar assim com tanta facilidade, por que não o fez para evitar a luta inútil?

Para quem argumentou que o primeiro The Matrix não podia ser considerado religioso por causa da ausência de referências a deuses, The Matrix Reloaded preenche a lacuna de forma exemplar. Temos aqui o velho senhor de roupas brancas, que de sua sala repleta de monitores de vídeo (omnisciência) controla o destino de todos (omnipotência), estejam dentro ou fora da matriz. Adequadamente, ele é chamado de "Arquiteto". Em outra referência bíblica, a última cidade dos humanos chama-se Zion, o mesmo nome da morada do deus cristão. E Zion é um lugar deprimente. A população veste-se com trapos, carrega alimentos de aspecto duvidoso em cestos pré-históricos, e dança em transe ao som de tambores primitivos. Pior, é liderada por um conselho de crédulos anciãos e por uma estrutura militar previsivelmente rígida. Resta saber por que preferem essa existência lastimável às possibilidades da vida simulada na matriz. Afinal, como diz Cypher no primeiro filme, mesmo sabendo que o bife não existe, se ele é suculento e delicioso em todos os aspectos que o cérebro pode perceber, qual a diferença? Se o real não é intrinsecamente certo ou bom, por que há de ser o simulado automaticamente mau ou errado?

Grande parte do encanto inicial de The Matrix não pode ser reproduzido. Agora já tomamos a pílula vermelha e já sabemos o que é a matriz (aquele momento de descoberta na primeira história é inesquecível, quando público e protagonista percebem ao mesmo tempo que os acontecimentos inexplicáveis afinal tinham uma explicação perfeitamente lógica) e as cenas de kung fu em slow motion com a câmara girando ao redor do lutador e transformando a violência em bailado já foram exaustivamente utilizadas no cinema e na televisão nos últimos anos. Assim, The Matrix Reloaded soa muitas vezes como a explicação de uma boa piada: desnecessária e incapaz de repetir a graça.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Nemo Nox é editor do blog Por um Punhado de Pixels e do site Burburinho, onde este texto foi originalmente publicado.

Nemo Nox
Washington, 20/5/2003

 
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