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Quinta-feira, 31/7/2003
Do Requiem
Ricardo de Mattos

Entre os principais factos da natureza humana, nenhum é tão mal visto ou recebe pior tratamento pelo homem comum do que a Morte. Prefere agir como se ela ocorresse apenas com os outros e jamais consigo ou seus próximos; ao menos não tão cedo. Tem por agourenta ou de mau gosto qualquer menção a ela, quando deveria tê-la sempre em pensamento. Se o homem contemporâneo não possui mais a antiga fé em Deus ou n'uma religião, todavia não atingiu a descrença total, e sua permanência neste patamar médio confere-lhe uma angustiante indefinição. Queda-se sem socorro pelo medo em posicionar-se diante as grandes questões da existência e enfrentá-las. Adia a reflexão ou realiza uma superficial e inútil. Sequer falo em contemplação, cujo significado parece-me envolver um constante retorno ao assunto.

Felizmente, o tema já mereceu melhor tratamento. Não me refiro somente a estudos psicológicos, sociológicos ou jurídicos, nem à abordagem das Letras. Inclusive, saliento o predomínio do olhar sobre a forma do fenómeno. A Morte de Ivan Ilich, pelo que me lembro, cuida da agonia do personagem imerso em pensamentos e recordações. O Suicídio, de Durkhein, aborda este modo de extinguir a vida e as questões sociais envolvidas. Forma anterior e rituais posteriores, entretanto, são dois círculos tangentes n'um ponto, o instante preciso no qual a vida humana racional, voluntária e sensitiva cessa.

O momento pontual deste apagar sempre recebeu menor atenção. O Museu da Inconfidência de Ouro Preto guarda n'uma de suas salas do primeiro andar dois quadros que retratam o lapso exacto. Refiro-me às telas A Morte do Justo e A Morte do Pecador: hoje parecem inocentes ao expectador moderno, mas já importaram a um público impressionado. Cheguei a encomendar uma cópia do primeiro, porém o pintor não me deu retorno.

Para a Igreja de São Tomé, em Toledo de Espanha, foi pintado por El Greco em 1.586 o quadro a ilustrar a coluna de hoje. O Enterro do Conde Orgaz refere-se a uma lenda local: chegada a hora de enterrá-lo - lembrando que nas antigas exéquias inexistia o féretro, ficando o corpo depositado sobre uma mesa própria ou mesmo uma lápide e em várias igrejas da Europa este costume foi perpetuado pelo mármore -, teriam aparecido os santos Agostinho e Estêvão para amparar o cadáver e deitá-lo no túmulo. Talvez aqui não seja possível ver, mas há um grande anjo no centro do quadro acolhendo o espírito do Conde para apresentá-lo ao Cristo e Sua Santa Mãe. Este anjo da apresentação, não vejo indícios de que seja São Miguel, divide a obra em dois planos definidos. O plano humano com a luz das poucas tochas, imerso em silêncio, quietude, observação e reflexão. O plano divino no qual toda a luz emana do Redentor, notando-se movimento, clareza, música e discreto júbilo.

A Igreja Católica já utilizou uma liturgia específica para os mortos. Requiem, Missa Requiem, Missa de Requiem, Missa Pro Defunctis, Ofício dos Mortos são nomes desta celebração. Inicialmente reservada para o dia dois de novembro - Dia dos Finados instituído em 998 d.C. - passou à celebração em funerais particulares. Uma consideração mística aponta dupla função para o rito: encaminhar aos céus a alma recém liberada e consolar os que ficam. O nome mais famoso provem da primeira palavra do Introitus:

Requiem aeternum dona eis, Domine
(Dá-lhes o descanso eterno, Senhor)

e para melhor entender sua estrutura, ajuda se lembrarmos a da missa comum. Compõe-se a missa cotidiana, segundo a nomenclatura tradicional, do Kyrie - "Senhor, tende piedade ..." -, Gloria, Credo, Sanctus - sanctus, benedictus e hosanna - Offertorium, Agnus Dei e por fim, após a benção final deveria ser utilizado o Alleluiah. Agnus é a palavra latina para cordeiro; até hoje em Portugal refere-se ao "anho". A variação é bem grande, mas pode-se arriscar a dizer que o rito de defuntos elimina o Gloria, o Credo e o Alleluiah, antepõe o Introitus já referido ao Kyrie, por sua vez seguido da Sequentia (Dies Irae) e tudo termina com o Lux Aeterna e o Libera-me. As partes acrescidas são denominadas "próprias" ou "móveis" por sua especificidade. As partes fixas constituem o "ordinário" ou "comum". Poderia ocorrer de um mestre compor apenas para aquelas, mantendo estas. Ou ainda valer-se de outras menos usuais, como o Taedet e o Versa Est In Luctum. Celebrava-se o Requiem com o morto diante de todos: com os pés voltados para o altar, se leigo, com os pés voltados para os fiéis, se clérigo.

O Dies Irae - Dia de Ira - foi incorporado após o século XIV e sua adopção foi gradual. Refere-se ao dia do Juízo Final e a maioria dos compositores concentra aqui toda a dramaticidade do Requiem. Texto e música aliam-se para impressionar o fiel com cenas do julgamento e a iminência do Inferno: "A quem poderei invocar/ se nem os Justos estarão seguros?". A oração, se escrita com base no Apocalipse, não consta de nenhum livro, quer do Velho, quer do Novo Testamento. O terror deriva da mística medieval que acabou opondo à misericórdia divina a pena eterna, cabendo a Diderot decifrar o paradoxo no século XVIII, mostrando o erro na tradução como "eterno" da palavra hebraica cujo significado é "durável".

A comemoração do Dia dos Mortos foi fundamentada pela doutrina de São Tomás de Aquino acerca do Purgatório. Contudo, a Missa dos Mortos constante do Missal Romano promulgado pelo Papa Pio V em 1.570 parece ser de origem franco-galesa. Do cantochão às experiências polifónicas, elaborado em todos os estilos, o Requiem acompanhou a história da música até receber expressão actual n'uma versão dos anos oitenta do século passado. O naipe por excelência utilizado é o dos metais: trompas, trompetes, trombones e tubas, devido principalmente à referência expressa no Apocalipse.

O Ofício de Defuntos composto em 1.603 pelo espanhol Tomás Luis de Victoria (1.548/1.611) para os funerais de Maria da Áustria - viúva do imperador germânico Maximiliano II - inicia-se justamente com o Taedet. É uma lectio, leitura de um texto eclesiástico específico para a ocasião. A imperatriz viúva passou seus últimos anos retirada no convento das Descalças Reais, onde Victoria era empregado como músico. Estamos no período de exacerbação religiosa no qual se encaixa o reinado de Filipe II de Espanha, campo rico para o crescimento vigoroso da rígida doutrina de São João da Cruz (1.542/1.614). Não por acaso, o pintor de destaque foi El Greco. A mentalidade renascentista começa ceder seu lugar à estética e ao pensamento que caracterizam o período barroco. O Taedet apresenta-nos a oração do fiel em busca da definição de sua posição perante Deus. Praticamente, pede-Lhe satisfações:

"... e externarei a amargura de minh'alma.
Direi a Deus: 'não me condenes,
Mas mostra-me por que me julgas assim.
(...)
transcorrem Teus anos como os dias dos homens,
para que devas buscar em mim as faltas
e esquadrinhar em meus pecados?
'"

Soa atrevido, porém chegou o momento de liberação da alma e esta buscará saber o motivo de seus sofrimentos no mundo. Deus não é um homem e portanto deve entender os sofrimentos e revoltas de Sua criatura e perdoá-la, julgá-la como ser limitado e imperfeito, não buscar nela a constituição de um deus.

Em Portugal, temos Duarte Lobo (1.565/1.646) compondo sob influência da escola espanhola de música. Duas as missas mais conhecidas, uma a oito vozes (duas sopranos, duas contraltos, dois tenores e dois baixos) publicada em 1.621 e outra a seis vozes publicada em 1.639 (duas sopranos, uma contralto, dois tenores, um baixo) seguindo a de Victoria. Muitas obras poderiam esclarecer sua fama, se a maior parte não fosse destruída no terremoto de Lisboa. A forma litúrgica do seu segundo Requiem é mais reconhecível. Como o de Victória, encerra-se com um responsório, uma forma de diálogo entre o solista e o coro ao entoar um salmo: o salmista interpreta um versículo e a assembléia responde com o "responso" - resposta. Nestes dois casos temos apenas vozes, com eventual acompanhamento por órgão.

Wolfgang Amadeus Mozart (1.756/1.791) compôs o mais famoso de todos, não só conhecido pela execução, com também pelas lendas a envolverem-no. Orquestra e coro operam juntos n'uma obra em extremo comovente, sim, mas não duvido que Mozart fizesse algumas alterações caso a vida permitisse-lhe a publicação definitiva. Foi concluído, como se sabe, por seu aluno Süssmayr. O Kyrie pede atenção pelo uso da unissonância entre sopranos e violinos, contraltos e violas, tenores e violoncelos, contrabaixos e baixos. As vozes e instrumentos fundem-se, e se não atentarmos perdemos o efeito. Não sei por que motivo, foi utilizado nas cenas finais do filme Elizabeth.

Luigi Cherubini (1.760/1.842) teve a Florença por berço mas estabeleceu-se na França em 1.786. Foi autor de duas destas missas. A primeira data de 1.816 e foi composta em memória de Louis XVI, rei de tão triste destino. O primeiro Requiem assegurou a Cherubini celebridade maior que suas óperas, e mesmo Beethoven afirmava não compor um seu a fim de evitar o plágio. Tão sincera e manifesta a admiração do músico alemão, que a primeira execução vienense foi justamente em sua intenção. Em verdade, o primeiro Requiem tem grande mérito, não valendo apenas pela recomendação: é majestoso, dramático sem ser trágico. Solene sem ser carrancudo, como é o caso do segundo Requiem, datado de 1.836. É obra do inverno do compositor: austera, apenas utiliza vozes masculinas.

O Padre José Maurício Nunes Garcia é originário do Rio de Janeiro (1.767/1.830). Foi professor, compositor e seu destaque levou-o ao cargo de capelão de D. João VI. Compôs em 1.816, para os funerais de Dª. Maria I, um Requiem sui generis formado por nove responsórios, tendo pouco do texto litúrgico convencional. Na Pequena História da Música, Mário de Andrade assim refere-se à obra: "O 'Requiem', considerado uma das obras primas de José Maurício, é também a obra prima da música religiosa brasileira. Claro, bem escrito, bastante ingênuo no emprego da polifonia, reflete o espírito da época. E pela invenção melódica duma serenidade, duma nitidez puras, se equipara ao que faziam, no gênero, os italianos do tempo". É uma obra despretensiosa da qual gosto muito.

O fim de Alessandro Manzoni, célebre escritor de Os Noivos, ensaísta e político da unificação italiana, em 1.873 levou Giuseppe Verdi (1.813/1.901) ao início da composição de seu Réquiem para estreá-lo no ano seguinte. Quem o ouve sem acompanhar o texto julga tratar-se de mais uma ópera. O Libera-me foi um tributo a Rossini reaproveitado nesta composição tida como Requiem de um agnóstico. Pairam as sombras de inconformismo e protesto perante a morte, atitude esta transparente no violento Dies Irae tocado piu fortíssimo (fff). N'outra parte um verso diz: "nada restará impune". O "nada" (nihil) é repetido pela solista não para revelar a fé na justiça divina, mas para salientar o receio de um fim geral também provável. Tão trágico quanto o de Hector Berlioz (1.803/1.869), porém melhor.

O chamado Requiem Alemão composto por Johannes Brahms (1.833/1.897) foi iniciado em 1.861; ora abandonado, ora retomado, ganhou impulso decisivo em 1.866 com o falecimento de sua mãe. Ainda assim foi 1.869 o ano da estreia. A obra nega todo o explicado acerca dos componentes litúrgicos, pois formam seu texto excertos colhidos na Bíblia luterana. O escopo é levar à aceitação tranqüila da Morte. Convoca ao abandono decisivo de uma vida material repleta de mesquinharia e a enfrentar com paciência a passagem para uma vida futura de plenitude e verdade, transição facilitada se o homem entender que a Eternidade não está aqui e deixar de agir como imortal. São eloqüentes os coros da segunda e da sexta parte, este de pompa vigorosa admoestando a encarar a Morte como mera passagem para outro caminho.

O Requiem de Gabriel Fauré (1.845/1.924) estreado em 1.900 é a versão de orquestração ampliada do composto em 1.887 por ocasião da morte de seus pais. A crítica musical apelidou-o "canção de ninar da morte" por não haver expressão de imagens terrificantes. Gracejando, acertou o intento do músico. Ele eliminou o Dies Irae e incluiu súplicas como Pie Jesu e In Paradisum para melhor transmitir as ideias de libertação e de confiança da boa acolhida n'um lugar melhor. Fauré consegue mostrar-nos nesta serena versão a beleza austera da morte. Sua pacatez irmana-o ao de Charles Camille Saint-Saëns (1.835/1.921, abaixo), marcados ambos pelo emprego destacado do órgão.

Talvez surpreenda o facto de Andrew Lloyd Webber (1.948), tão conhecido por seus musicais, ter sido autor de um Requiem. No verão de 1.984 veio a público a obra elaborada por dois motivos: a morte de seu pai em 1.982 e uma história cambojana sobre um menino que deveria escolher entre sua morte e a da irmã mutilada. Sendo três as pessoas homenageadas, três as vozes: tenor, soprano e sopranino - voz infantil de um garoto. Foi inspirado na teatralidade do Requiem de Verdi. Aproxima-se de um oratório e as homenagens não conferem destinação a um funeral específico.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 31/7/2003

 
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