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Quinta-feira, 18/3/2004
O pagode das cervejas
Adriana Baggio

A publicidade é o produto da Indústria Cultural pelo qual perpassam todos os outros, como o cinema, a música, os artistas, a novela. Normalmente, os elementos desses produtos presentes na publicidade estão em nível de conteúdo. Uma determinada música de sucesso acompanha as imagens de um anúncio de carro, os efeitos especiais de um filme são usados em um comercial, os artistas de uma novela estrelam campanhas publicitárias. Chegamos ao ponto em que, no entanto, a própria forma desses outros produtos começa a ser usada pela publicidade. É o caso da "novela das cervejas", que ganhou um novo capítulo com o filme da Brahma, cuja estréia no Jornal Nacional de sexta passada colocou no ar a "traição" de Zeca Pagodinho à Nova Schin. Intrigas, paixões, traições: tem ou não tem a forma de uma novela mexicana?

Mas apesar do divertimento de alguns e da admiração de outros, que vêem na estratégia da Brahma uma jogada de mestre, uma idéia genial, a "traição" do pagodeiro causou mal estar entre o público.

A publicidade em si não é uma atividade que angaria credibilidade. Durante muito tempo os comerciais usaram artistas e personalidades para divulgar seus produtos de forma não muito verossímil, associando estrelas a marcas que eles nunca consumiriam na realidade. O consumidor ficou mais esperto, alfabetizou-se na linguagem publicitária e percebeu que o seu artista predileto anunciava determinado produto não porque realmente aprovasse ou utilizasse-o, mas porque recebia um bom cachê para isso. Por conta disso, as marcas passaram a tomar mais cuidado com a relação entre os artistas e os produtos nas campanhas publicitárias. Procura-se tornar o mais verossímil possível essa relação. E como a publicidade hoje extrapola os intervalos entre os programas e invade o conteúdo editorial dos veículos, muitas vezes as normas da relação do garoto-propaganda com o produto regulam também sua vida real, e não somente aquela mostrada no comercial.

Essa situação é uma das desculpas dadas por aqueles que defendem a "virada de casaca" de Zeca Pagodinho. Por conta do contrato com a Schin, ele era obrigado a beber só essa cerveja em público. Não suportando mais semelhante tortura, aceitou fazer o comercial da Brahma para poder beber sua cerveja predileta em paz. Fica a pergunta: se era tão ruim assim beber Schin, porque ele não recusou o convite da empresa?

É lógico que um contrato de 1 milhão de dólares, como estão dizendo por aí, é argumento mais do que suficiente para qualquer um repensar sua lealdade. No entanto, por mais que as pessoas saibam que Zeca recebeu para estrelar as duas campanhas, dá um travo na garganta perceber a crueza dessa situação em que credibilidade se compra, não se conquista.

Concordo com Marinho, do site de notícias sobre publicidade Blue Bus, que a situação revela o posicionamento das marcas no mercado: a Nova Schin, depois de um lançamento estrondoso e da conquista de uma parcela significativa do mercado, começa a perder terreno para as marcas líderes, entre elas a Brahma. Nessa ótica, a campanha da marca da AmBev é genial. Porém, gosto sempre de frisar com meus alunos e com qualquer pessoa com quem converse sobre publicidade: existem várias maneiras de você dizer a mesma coisa, ou de comunicar seu posicionamento.

Tecnicamente a estratégia da Brahma é fenomenal. Mas e o outro lado, o lado humano da coisa? Já li outros comentários chamando de pieguice a abordagem "humana" da história, que isso é negócio, que cerveja é paixão e que por isso não cabem reflexões de ordem moral ou racional. Não me convencem. Como publicitária, acredito que a sobrevivência e o futuro dessa atividade depende da credibilidade e da honestidade. E esses são valores cada vez mais admirados pela população. A Lei de Gérson já não faz mais o mesmo efeito. O país luta por uma postura mais ética e transparente, e um dos nossos maiores veículos de ideologia, que é a publicidade, com o exemplo da Brahma parece estar indo contra essa corrente.

Muitos condenam a postura da marca e do artista. Quando aceitou associar-se com a Nova Schin, Zeca Pagodinho não estava apenas estrelando um comercial. Estava associando a essa marca sua credibilidade enquanto apreciador de cerveja. Era o apelo de um entendedor para que o público provasse a nova cerveja e visse que ela estava melhor, mais gostosa, já que a fama da marca não era lá essas coisas. Na cabeça das pessoas o mecanismo funciona assim: se ele que é um pau d'água gosta, vou experimentar. A estratégia deu tão certo que as marcas rivais, principalmente as da AmBev, passaram a atacar a Nova Schin, ao invés de abordar a qualidade de seus próprios produtos ou outro diferencial. A Kaiser, apesar de não atacar diretamente, foi lá e mudou a fórmula, lançando a Kaiser Novo Sabor. Todas elas, em suma, sentiram-se ameaçadas com a Nova Schin.

Zeca Pagodinho, ao afirmar numa campanha brilhante que sua relação com a Nova Schin não passou de um "amor de verão", representa a volubilidade do estereótipo do malandro, aquele que dá uma escapadinha, mas sempre volta para a "patroa". Se nas relações pessoais esse comportamento talvez ainda não esteja condenado, com a cerveja parece que a coisa é diferente. As pessoas tomaram as dores da cerveja abandonada e sentiram-se traídas na confiança que depositaram no aval do músico. E como brasileiro tem mania de torcer pelo coitadinho, pode ser que o tiro tenha saído pela culatra. Pieguice? Pode até ser. Mas novela também é piegas e dá a maior audiência.

Adriana Baggio
Curitiba, 18/3/2004

 
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