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Terça-feira, 13/7/2004
Deitado eternamente em divã esplêndido – Parte 1
Luis Eduardo Matta

Provavelmente, nenhuma discussão prolongou-se por tanto tempo no Brasil do que a questão sobre a identidade do país. Há mais de um século, intelectuais, artistas e sociólogos se debruçam sobre o assunto, sem nunca terem chegado perto de um consenso satisfatório. Ainda hoje o tema permanece em aberto, sem solução à vista e por uma razão simples, que pode ser explicada em uma frase, à luz da psicanálise: o Brasil é um país que não se aceita.

Tomando por base a tese de que um país é, basicamente, um conjunto de indivíduos e que são eles, no fim das contas, os agentes de expressão das idéias relativas ao meio que habitam, façamos uma breve reflexão: do mesmo modo que um indivíduo em paz consigo mesmo, ciente dos seus valores e defeitos, com um nível razoável de autoconfiança, sem ilusões e paranóias desmesuradas sobre si e a sua imagem perante a sociedade dificilmente sentiria necessidade de se engajar num processo desesperado de auto-análise existencial para encontrar um sentido para a própria vida, o mesmo podemos afirmar do seu coletivo - a sociedade - e, do país por ela formado. No Brasil, a falta de auto-estima está por toda parte, a começar pela irrefreável fixação nos modelos europeu e norte-americano e a preocupação excessiva que parte da sociedade alimenta em relação à visão negativa que as nações desenvolvidas do Norte supostamente teriam do calor africano e selvagem da nossa terra e do primitivismo e indolência do nosso povo, como se, no fim das contas, isso, ainda que configurasse uma verdade absoluta, tivesse grande importância.

A busca por uma identidade redentora que una os vários Brasis, reduzindo as distâncias que separam o país ideal do real, traduz um esforço para se criar um conceito de nação que se torne aceitável por uma elite eternamente fascinada pelos ares parisienses, pelo fausto londrino e pela opulência nova-iorquina e, ao mesmo tempo, seja fiel a todos os aspectos da sua realidade. Não basta estampar no rosto um sorriso amarelo de polidez forçada, como fazem muitos, na hora de enaltecer a simpatia do povo humilde, a fertilidade do solo, a exuberância das matas tropicais e a riqueza do folclore interiorano, se, no fundo da alma, tudo isso ainda é visto como um sinal indelével de primitivismo que, ao contrastar flagrantemente com o frescor civilizado dos bulevares europeus, expõe as cicatrizes e contradições de um país tropical e mestiço, com uma forte herança colonial e escravocrata e que nunca realizou o seu grande sonho de se equiparar, ao menos em aparência, ao admirado Primeiro Mundo. É uma questão que nunca conseguimos resolver e que ainda é fonte de grande ressentimento por aqui. Talvez, inclusive, essa seja uma das razões da implicância que sempre tivemos com a Argentina que, mal ou bem, atingiu esse objetivo e dotou sua capital de uma atmosfera totalmente européia, algo similar ao que o Rio de Janeiro e São Paulo tentaram fazer sem sucesso.

Quando eu afirmo que o Brasil não se aceita, não estou dizendo que ele se odeie ou que não acredite na sua viabilidade como nação. O que ocorre é uma espécie de condicionamento mental. Durante décadas fomos bombardeados por teses duvidosas e tendenciosas sobre o que constituía uma civilização. Apreendemos e incorporamos ao nosso imaginário a idéia de que o desenvolvimento tem a pele branca e as baixas temperaturas como elementos imprescindíveis. Na mesma proporção, a pele escura e o calor estiveram, desde sempre, vinculados à noção de primitivismo. As influências desse pensamento, principalmente no que diz respeito à questão da miscigenação, considerada uma anomalia racial até tempos recentes, tiveram conseqüências nefastas na relação da elite brasileira com o país, uma relação quase neurótica de amor e ódio, de atração e menosprezo, algo como: meu país é belo, cálido e acolhedor, eu o amo, amo a idéia de pertencer a essa terra rica e de vastidão continental, mas, ao mesmo tempo, me envergonho dela diante do mundo, por causa da sua feição quase selvagem, por causa dessa mistura indecorosa de raças e dos nossos costumes ridiculamente caipiras, tudo muito distante do modelo europeu de civilização que é, no fim das contas, o modelo adequado e respeitável.

Esse verdadeiro conflito existencial que torna o Brasil uma espécie de gigante complexado e inseguro, sempre à beira de um ataque de nervos ante o mínimo esboço de crítica vinda de fora, é, a meu ver, uma das causas da nossa atual desgraça econômica. No afã de querer exibir ao mundo a sua importância, o seu poderio, a sua incompreendida grandiosidade, o país enterrou montanhas de dinheiro em obras megalomaníacas, sobretudo no período compreendido entre as décadas de 1950 (Brasília) e 1980 (Itaipu); dinheiro este, do qual o país não dispunha e que, é sempre bom lembrar, se materializou na forma de dívidas monumentais, com as quais estamos arcando penosamente até hoje. A preocupação dos nossos mandatários ao levar a cabo tantos empreendimentos faraônicos, notem, sempre foi com a aparência, com a superfície, nunca com a promoção de reformas profundas e duradouras na base da sociedade, educando decentemente a população e fazendo-a desenvolver-se por si mesma o que, certamente, capitalizaria muito mais créditos a favor do Brasil, valorizando a sua imagem - e a sua auto-imagem - de forma consistente.

Apesar de a consolidação de uma civilização puramente européia no Brasil como um todo ter fracassado - ou até talvez por causa disso - a Europa e a América do Norte continuam sendo os grandes referenciais no que diz respeito a tudo por aqui, de tendências da moda a produtos industrializados. Experimente exibir uma bugiganga qualquer para um amigo, dizendo que é importada; pode ser a pior porcaria do mundo, um artefato ordinário, vagabundo, rudimentar que nem sequer funcione direito, mas a primeira reação do seu interlocutor provavelmente será favorável. Experimente anunciar à sua família que um conhecido seu que mora em Londres ou em Paris, está chegando ao Brasil; todos ficarão curiosos em conhecê-lo e se esforçarão para passar a ele a melhor impressão possível do país. É a velha mania de achar que o que (ou quem) vem de fora sempre é bom ou, ao menos, superior. Também a relação das pessoas com o clima é bastante sugestiva. Por aqui, o frio é visto como um agente civilizatório. É como se, o fato de haver inverno em boa parte do Brasil, significasse que o país não está totalmente perdido no intuito de parecer desenvolvido. O frio dá uma aparência cinzenta e sóbria às cidades, força as pessoas a se vestir com uma indumentária que bem poderia ser usada no Primeiro Mundo, imprime à vida um estilo improvável na canícula tropical.

Sem querer chover no molhado, a verdade é que o Brasil é um país majoritariamente pobre, apesar do seu PIB elevado e da industrialização crescente e significativa e isso é, indiscutivelmente, um grande obstáculo para a formação da sua tão almejada identidade. Inclusive porque a classe média urbana, formadora de opinião, se identifica mais com os personagens de seriados americanos do que com o povão tupiniquim. Numa tentativa de minorar os efeitos da percepção desanimadora de pertencer a uma nação alquebrada de desvalidos, ruas sujas e atmosfera pouco sofisticada, essa elite pouco a pouco foi se encastelando em shopping centers, condomínios fechados e clubes exclusivos, nos quais o Brasil ideal pôde ser criado, sem a influência perniciosa e indesejada do Brasil real, cuja existência, muitos ainda preferem ignorar.

Haverá uma luz no fim do túnel? O Brasil um dia se sentirá seguro o suficiente para se impor no cenário mundial sem o temor de ser julgado ou ridicularizado? Teremos condições de valorizar o que se faz aqui dentro sem necessariamente estabelecer comparações com o que existe no exterior? Acredito que sim. Talvez porque ainda sejamos uma civilização recente, em formação, um grande e complexo laboratório antropológico e sociológico, ainda carente de referenciais próprios. A civilização brasileira pode ser uma promessa, mas não devemos nos acomodar a esta percepção ou acabaremos como no velho slogan do "país do futuro", que até hoje não saiu do papel e cujas letras, a cada ano, ficam mais desbotadas.

No próximo artigo, daqui a duas semanas, voltarei ao tema analisando, desta vez, os efeitos do nosso complexo de inferioridade na produção cultural nacional. Aguardem.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 13/7/2004

 
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