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Quarta-feira, 25/8/2004
Literatura como arte
Ana Elisa Ribeiro

Na esteira das discussões sobre ensino de leitura, escrita e letramento, assim como no vácuo da lembrança dos professores ruins e das atividades inúteis, dou continuidade à série de textos que traz à tona as experiências mais recônditas da vida escolar de um brasileiro médio.

Saco da memória as aulas de Literatura Brasileira, nas quais os livros de literatura pareciam haver sido produzidos só até a metade do século XX, quando qualquer cataclismo impediu que surgissem outros livros e outros talentos da língua portuguesa, tanto aqui quanto em Portugal.

O professor adentrava a sala de aula de posse de seu livro didático, ordenava que abríssemos o manual na página tal ou qual e então dávamos início à leitura de mais um texto clássico. Após a leitura silenciosa, a turma se revezava na leitura expressiva de algum conto ou poema. Enfadados, fazíamos força para não deixar as pálpebras fecharem os olhos ou tratávamos de evitar que o mestre percebesse que nos enviávamos bilhetinhos de amor ou fofocas internas.

Vez ou outra eu me interessava por um verso, uma palavra desconhecida e muito sonora ou um livro que cairia na prova da semana seguinte. Também certas atividades obrigavam a certo afinco: o teatro sobre passagem escolhida de Dom Casmurro ou a mímica sobre conto de Lima Barreto. Poesia parecia sempre tão lúdico e nós podíamos escrever poemas para o dia dos pais. Isso seria nossa máxima aproximação com a Literatura e talvez nos questionássemos sobre a utilidade da matéria em nossas vidas cotidianas.

Demorou muito para que eu aprendesse que literatura (sem caixa-alta) era uma das artes, a que privilegiava a língua (falada ou escrita) e que eu poderia ter gosto por ela do lado de fora da sala de aula, para além das provas bimestrais e para aquém da obrigação de escrever acrósticos de Natal.

Aos poucos, foram surgindo nomes de autores que não estavam nas listas dos manuais didáticos e descobri que alguns estavam vivos e moravam no Brasil. Também soube que não se publicam livros apenas postumamente e que se discute literatura em eventos culturais.

Entendendo que a literatura era lida na sala de aula com o objetivo seco e explícito de fazer provas de múltipla escolha (ou peças de teatro precárias) e que poderia ser lida à soleira da porta de casa, ou deitada na cama à hora de dormir, ou durante férias e feriados, sentada na praia e em horas de prazer, passei a dividir minha atitude com relação aos livros de literatura conforme o ambiente em que eu estava.

A questão relativa à (in)utilidade da literatura não mais me importou ou importunou. Se me serve como diversão, aprimoramento ou auto-ajuda, eu que me dê com ela. O que sei é que me adianta a vida e faz muito bem. Há quem prefira futebol ou gamão. Já a Literatura como disciplina escolar pareceu-me bastante objetiva: servia para marcar pontos no diário e me fazer passar de ano. Também serviria, mais tarde, para o vestibular e para as redações que tratavam de intertextualidades calculadas.

Enquanto o mestre entrava em sala despejando as páginas do livro, eu pensava que seria bom se meus colegas percebessem certas nuances do conto de Clarice ou que conhecessem, ao menos, Ana Cristina César e Paulo Leminski. Também pensava que seria interessante se certo escritor fosse à escola nos falar do texto, do livro, do processo de criação, da publicação. Ou que alguém nos deixasse conhecer a obra por dentro, sem decorebas e predições sobre a prova.

O que me aturde, no entanto, não é tão isso. Provavelmente, a Literatura escolar será sempre tratada como uma lista de obras obrigatórias para a feitura de provas bimestrais. Também pode ser que a Literatura seja considerada um luxo de desocupados, matéria para quem não quer fazer Medicina ou Engenharia, ou ainda disciplina de distração, sem vínculo com a vida prática. Literatura como parte do currículo obrigatório, formadora de certo repertório mínimo de cultura inútil para cidadãos envernizados, banco de nomes de livros e de autores necessário ao estudante médio que pretende parecer culto.

Mesmo as provas bimestrais queriam avaliar não a leitura, mas a memória do aluno, o quanto ele gravava nomes de personagens e teorias tais como o que é protagonista. Também pareciam de suma importância o foco narrativo e a categoria tempo-espaço. Rima e estrofe eram conceitos importantíssimos e o poema que se exploda. Para ser poeta, há que estar morto há muito e ter vivido uma vida bêbada.

Não se compreendia o trabalho na linguagem, a forma como se contava certo roteiro simples, mas a narrativa linear, historinha de uma moça que mascava chicletes ou de uma família de retirantes vinda do Nordeste. Talvez por isso, tudo parecesse tão óbvio e comum, enquanto a literatura como arte da lingua(gem) se desvanecia em nossa frente.

Recentemente, para minha surpresa indisfarçada, recebi o fôlder de um congresso que discutia o ensino de disciplinas de arte. Qual não foi meu espanto quando, entre as matérias em debate, não se encontrava a Literatura! Havia lá um currículo inteiro (Artes Plásticas, Música, Dança, Escultura, Pintura, etc.), mas não havia Literatura, que é matéria pertencente ao rol das disciplinas "sérias", das que dão provas e reprovam ao final do ano.

Tive vontade de participar do congresso e levar um texto sobre Ensino de Literatura como Arte, para medir as reações. Mas o que eu queria mesmo era ver se a platéia do encontro reagiria à minha comunicação com olhares de espanto: "é mesmo! a Literatura é uma das sete artes!"

as moças do sabonete araxá e a orientação sexual
certa vez me disseram, dentro de um carro sedã, que elizabeth bishop era lésbica e que havia morado [ou coisa assim] em ouro preto. aquilo me impressionou muito. ser lésbica sempre me impressionava, porque as mulheres não me parecem seres amáveis.

também frida kahlo [reza a lenda que] era bissexual. os bissexuais me impressionam menos, porque, afinal, cria-se a rotina de não deixar que qualquer sexo ocupe todo o espaço. mas frida tinha uma beleza tão pouco admirável... e conseguia seduzir qualquer um.

adília lopes é virgem [também reza a lenda]. preciso ter cuidado porque ela é viva, embora não pareça, já que vive em uma pequeníssima cidade portuguesa e não responda nem mesmo às cartas entregues pelos correios. o fato de adília ser virgem muito me impressiona, porque isso é lastimável, verdadeiramente. toda mulher devia experimentar uns cinco ou seis homens antes de pensar em escolher um. ou devia viver cinco ou seis relações sexuais antes dos trinta anos. adília tem mais de quarenta. e se ela for lésbica, talvez possa não ser virgem.

virginia wolf suicidou-se plasticamente. morreu afogada num lago entediante, cheia de pedras nos bolsos. um vestido de florezinhas que eu jamais vestiria, ainda mais quando fosse me suicidar. um evento tão importante e único não devia prescindir de um belo terno preto ou de um sapato de bico quadrado. virginia tinha um marido, mas beijava meninas enquanto tecia personagens enfadadas.

linda carter foi a heroína da minha infância. foi a única mulher que me pareceu elegante usando braceletes dourados. aliás, talvez seja a única ocorrência de dourado que não me tenha soado brega. linda carter me intrigava porque se chamava linda. somente bem mais tarde fui ter nojo daquela bandeira americana que ela ostentava no corpo. uma amazona não devia ter um dos seios. e linda carter devia ser lésbica.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 25/8/2004

 
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