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Terça-feira, 18/1/2005
Separar-se, a separação e os conselhos
Fabrício Carpinejar

Cândido Portinari

Não há como definir o motivo para terminar com alguém. O que gerou a separação? O que provocou a absoluta segurança de encerrar o romance e abdicar do final feliz? Como que ocorre a transformação da companhia íntima, a qual se dividia segredos ao longo de anos, em uma estranha desaforada querendo arrancar o teu siso de ouro em uma vara de família? São movimentos subjetivos e sísmicos que definem a ruptura. Não é o peso, o rosto, as pernas que norteiam o amor. Nada o esclarece, muito menos o seu final e o distanciamento do tempo. O amor inicia na incompreensão compreendida, a confusão saborosa da identidade de não pensar em outra coisa, e termina em compreendida incompreensão, na confusão desastrosa da identidade de não querer pensar no assunto por mais um dia. De que modo algo que prometia aventura resulta na mais ferrenha apatia? Como um jogo com primeiro tempo eletrizante reduz o ritmo no segundo tempo e se conforma com o resultado?

Em que canto da memória, em que momento se toma essa decisão de que a pessoa com quem se vive não presta mais, de que foi um erro, de que se perdeu tempo ao lado dela. O que faz um homem ou uma mulher largar aquilo que considerava, uma noite atrás, seu santuário, seu universo, sua segurança. De onde parte esse instinto utilitário de que o par é um carro importado e é muito cara a reposição de peças. Não acontece de repente, tenho certeza. Tudo começa com a resignação, na certeza equivocada de que se sabe tudo. Quando se põe na cabeça que se cumpriu a apresentação, que não existe nenhuma surpresa porvir. Quando se deixa de perguntar para adivinhar as respostas. Quando se deixa de responder por não suportar as perguntas. Quando uma conversa com casais termina no insuportável álbum de retratos. Quando não se fala mais dele ou dela como uma novidade, porém como uma doença antiga, uma enxaqueca, uma tia distante. Acreditar que se domina a situação é pisar em falso. Amor não se assinala no calendário. Ou existe gente marcando uma ida no motel em agenda? O amor aceita apenas fiado. As dívidas aumentam sua longevidade. É falta de controle, imprevisto, improviso, nervosismo. Sem a covardia atenta, não há sedução. Sem o balbucio, não há sinceridade. Ninguém conhece tão bem o outro a ponto de dizer que verdadeiramente o conhece. Não vi mulher que não é no mínimo duas. Em algum lugar do corpo, desliga-se o aparelho. Fecha-se a conquista como se fosse um expediente comercial. Conquistei, ele é meu, ela é minha, deu. Abdica-se do esforço de explorar a personalidade em conversas e saídas noturnas. A tensão esfria e cada um se deita pensando uma forma mais rápida de se cumprimentar, de existir e, se possível, não se tocar. O beijo de despedida vai se especializando em acenar, tornando-se uma prova com barreiras. E não adianta seguir conselhos de amigos. Em estado vulnerável até leitura de horóscopo convence.

O único erro é confiar que o namorado ou a namorada, o marido ou a esposa, dentro de si é maior do que a figura que está fora, de carne e osso, mais carne do que o osso, apesar de estar mais interessado no osso para enterrar do que a carne para dividir a temperatura. A atração enreda, a convivência consolida, o tédio estremece, porém unicamente a falta de humor separa. Quem não tem defeitos também não tem virtudes. Rir dos limites e dos erros do relacionamento, por mais estranho que seja, é uma espécie de liberdade. Uma liberdade que só pode ser gozada a dois.

Distância e distanciamento
Sendo obrigado a ficar separado da namorada ou namorado, do marido ou da mulher, o que fazer? Morar em casas diferentes, cidades diferentes, países diferentes não revela distância. A distância mais difícil de ser superada é a do costume: a psicológica, a que não permite abraços efusivos e brincadeiras, que paralisa e planifica os sentimentos com os anos de convivência.

É um lugar-comum dizer que é fácil uma relação dar certo sem que os dois se vejam. Mas quem namora afastado não está convencido da conquista e se põe a trabalhar para surpreender. Acautela-se para não sacrificar o que está começando. Exercita mais antes de falar. Procura a toda hora uma forma de chamar atenção. Fiscaliza, atualiza a relação, olha ao telefone ou a caixa de mensagens com curiosidade inquisidora. Corre risco, cobre a aposta, suscetível a enganos, comédias e foras. Aprende a ver longe para não permanecer longe. Distância não é distanciamento. A primeira é física, o segundo é emocional.

Tudo é questão de matemática. Melhor ser dois no tempo sendo um no espaço do que ser um no tempo para ser dois no espaço. Dividir o mesmo teto é pouco perto de dividir o mesmo texto. Os casais separados pela força das circunstâncias não ficam com receio das juras e das promessas. Preocupam-se com sutilezas e detalhes. Não têm vergonha da vergonha. Não estão condicionados ao amor como posse, mas como incerteza. Conhecem quem são pela intensidade de sua busca. Esforçam-se para que a carne seja a lembrança de outra carne, a pele seja a lembrança de outra pele. O esforço é compreensão e a esperança, uma espécie de justiça.

A falta de imaginação termina com qualquer coisa, das atitudes mais complexas às mais simples. Como não colocar um ingrediente a mais ao seguir uma receita? É inevitável. Os melhores cozinheiros são de olho. Minha avó nunca anotou nenhum de seus pratos, porque me dizia: "a comida é que me diz quando está pronta, não eu". Erra-se para acertar. E quando se acerta, com um toque pessoal, parece um milagre.

Sem reagir à vida, não há experiência, há acomodação. Não é de estranhar que o medo de ver um nascimento é maior do que ver uma morte. Desmaiar num parto é mais fácil do que desmaiar diante de alguém que parte. Casais que se julgam definitivos porque moram juntos perdem o medo solidário de nascer (todo mundo que nasce precisa de ajuda) para deixar o medo mesquinho de morrer tomar conta da relação (todo mundo que morre, morre sozinho). O desejo não combina com segurança e senhas. O desejo é não saber o que vai acontecer depois. Os namorados e namoradas apartados por uma questão de trabalho, de residência ou de família estão dispostos a se encontrar dentro dos próprios desencontros. O círculo perfeito é muito apertado. Agrada-me a elipse, a hesitação, a fresta para arejar os afetos. Uma alegria breve pode vir a ser uma alegria interminável.

Conselhos
Não percebo quando estou recebendo conselhos ou dando conselhos. Não há um aviso: preste atenção, isso vai servir para toda tua vida. Conselho não é cerca eletrônica. É falar com fraqueza. A fraqueza é franqueza. E ocorre no momento em que não se pretende convencer ninguém, muito menos a si. Conselho é a total falta de persuasão, desobrigação. As linhas que sublinhei num livro são meus pensamentos. As linhas que não sublinhei são conselhos. Conselho não pode ser ralhado. Não pode ser imposto, ditado, planejado. Não é necessariamente para ser seguido ou compreendido. Não se trata de uma explosão, mas de um estalo. Suave, despretensioso e que é capaz de ser descoberto anos depois. O que acreditava que serviria a minha vida não prestou e o que não acreditava resultou em ensinamento. Talvez olhar de cara feia seja o sinal de que é um conselho. Fui um menino religioso. Religioso de conversar com os pássaros, de tomar chuva para esfriar a cabeça, de descascar bergamota no sol e alcançar gomos ao cachorro. Rezava terços aos nove anos, toda noite, enquanto meu irmão menor lia a revista Placar e o mais velho a Playboy. Tinha que me manter atento nas pedras para não pular passagens. Acompanhava a mãe nas missas, recolhia o dízimo, participava de grupo de jovens. A missa foi o primeiro caraoquê que participei. Não havia nota, o que me salvava do vexame. Cantava altamente desafinado. Cantar era gritar. Imaginava os vitrais como a geladeira da luz. A luz permanecia fria naquelas imagens, conservadas da mortalidade que suava e deformava. Minhas roupas encolhiam de repente. Me vestia mal para não chamar atenção. Chamava atenção porque me vestia mal. Contava meus pecados com detalhes. Aumentava meus pecados com volúpia. O padre tinha sono, arrulhava na cabine. Por muito tempo, confundi o confessionário com provador de roupa. Ainda são misteriosos os motivos da grade que separava o mundo de Deus dos fiéis. Deus merecia venezianas. Eu me envergonhava de não ter pecados. Roubava os pecados dos outros para me sentir mais santo, para ganhar confiança. Minha fé sempre foi maior do que a forma que encontrei para rezar. Eu só queria me salvar. Queria me salvar de mim mesmo. Custei a entender que não posso me dar conselhos - não me escuto ou me escuto tarde demais.

Nota do Editor
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de seis livros: entre eles, Cinco Marias (2004) e Caixa de Sapatos (2003). Estes textos foram originalmente publicados em seu blog e reproduzidos aqui com sua autorização.

Fabrício Carpinejar
São Leopoldo, 18/1/2005

 
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