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Terça-feira, 1/3/2005
Um romance de terror e de sombras
Luis Eduardo Matta

Certa vez, afirmei - não me recordo exatamente em que circunstâncias - que a leitura era um exercício permeado de sombras; que estas nos acompanhavam durante toda a jornada através das páginas e permaneciam presentes mesmo depois que a leitura acabava, por um tempo que variava de acordo com o impacto causado pelo livro e as suas reverberações pelo interior da alma, que poderiam durar a vida inteira. As sombras da leitura não são, necessariamente, maléficas ou assustadoras, embora tenham o dom de trazer à tona aquilo que, muitas vezes, preferiríamos manter esquecido. Elas vão nos envolvendo à nossa revelia, sem que percebamos e influenciando a maneira com a qual sentimos as nossas pulsações interiores e enxergamos o mundo em movimento à nossa volta. Por vezes, nos escancaram os olhos para o óbvio até então imperceptível; nos mostram a crueza do cotidiano, nos fazem mergulhar no lado escuro do ser humano, tentam nos convencer de que a vida é desprovida de sentido, de que ela é mesquinha, cruel, ilógica, que nada do que acreditamos intimamente tem valor diante do peso implacável da realidade. As sombras da leitura nos provocam, acima de tudo, perplexidade, ao revelar, por meio da ficção, os dilemas de uma realidade que, em geral, contraria o mundo que estamos sempre buscando idealizar de acordo com os nossos anseios e expectativas.

Ao iniciar a leitura do romance Com Quem Está Falando Marie Louise?, de M. L. Wilson (Komedi; 470 páginas; 2004), eu não podia prever, em absoluto que, com apenas algumas páginas viradas, essas sombras começariam a se insinuar sutilmente até um ponto em que envolveriam a leitura por completo. Ora, eu estava diante de um thriller de mistério e terror, com pitadas de paranormalidade e drama familiar. Imaginava que me depararia, basicamente, com cenas de suspense e tensão - algo que, de fato, ocorre. Mas não esperava, em absoluto, que além do suspense, presente em todo o livro e que prende a atenção do leitor de forma intensa, o romance apresentasse uma rica galeria de personagens sombrios e abjetos que têm sua vida, sua conduta e seus desejos mais recônditos e infames trazidos à tona, pondo a nu, sem piedade, o lado mais podre e mesquinho do caráter humano. É raro num thriller identificarmos essa combinação entre suspense e aprofundamento psicológico; quando ela existe, muitas vezes, o autor erra a mão, resvala para a pieguice ou para a reprodução exagerada das suas próprias culpas e obsessões. M. L. Wilson soube dosar os elementos muito bem e o resultado é um livro competente e envolvente, além de primar por uma escrita elegante, rica e, o que é melhor, clara.

Ambientado no cantão de Zurique, na Suíça alemã, Com Quem Está Falando Marie Louise? tem início com a morte trágica do casal de biliardários Stephen e Yvonne Eichenberger, vítimas de um acidente de carro. Stephen e Yvonne tinham uma filha pequena, Marie Louise, de cinco anos, que se torna a órfã mais rica da Suíça e passa a ter a sua fortuna cobiçada pelo meio-irmão de Yvonne, Martin Hutter, seu parente mais próximo, que decide requerer a tutela da menina. Hutter e seus parentes logo se instalam na suntuosa mansão dos Eichenberger, em Itschnach, perto de Zurique. Hutter, sua mulher Eleonore e os filhos constituem uma família gananciosa, de péssimo caráter, devotada aos prazeres hedonistas e que nutrem, acima de tudo, um desejo doentio de recuperar a riqueza e o prestígio que usufruíam no passado, antes de Hutter torrar todo o seu dinheiro. No momento em que eles tomam posse da mansão em Itschnach, porém, coisas estranhas começam a acontecer. A propriedade, antes acolhedora, se transforma num lugar hostil e sombrio. Fenômenos sobrenaturais, assustadores e inexplicáveis vão se sucedendo e, pouco a pouco, conduzem os Hutter ao pânico e ao desespero extremo.

A trama conta, ainda com um núcleo policial, protagonizado pelo simpático Comissário René Honegger, do Departamento de Homicídios, encarregado da investigação da morte dos Eichenberger, uma morte que ele considera suspeita. Embora todos os indícios apontem para uma fatalidade, Honegger desconfia que o casal pode ter sido vítima ou de um atentado político, devido à sua estreita amizade com um proeminente homem público, futuro conselheiro do Cantão de Zurique, ou de um crime perpetrado pelo próprio Martin Hutter, o único potencial beneficiado com o desaparecimento da meia-irmã e do cunhado. O comissário começa a investigar o passado de Hutter e, ao descobrir de quem se trata, passa a temer pela vida da pequena Marie Louise, com quem simpatizara desde a primeira vez em que a encontrou, logo no princípio da história.

Nascida em Minas Gerais e, há anos radicada na Suíça, M. L. Wilson soube captar bem a atmosfera do país que escolheu para viver. Ela nos explica, por exemplo, que, apesar dos imensos avanços econômicos e sociais, de toda a sua notória riqueza e de estar localizada no coração da Europa, a Suíça conserva um discreto, porém enraizado espírito machista nas relações pessoais e de trabalho, fato que eu, por exemplo, desconhecia. O belo Cantão de Zurique, um dos enclaves mais ricos e aprazíveis do mundo, é descrito com perfeição: o comércio rutilante e abastado da Rua da Estação (Bahnhofstrasse), o outono mesclando dias de neve com a exuberância do intenso colorido das folhas enchendo as árvores, a paz eterna nas montanhas onde nada nunca acontece.

Wilson consegue em Com Quem está Falando Marie Louise?, enveredar por uma seara ficcional até então escassa - para não dizer inexistente - na Literatura brasileira. Ainda assim, contudo, não há como enquadrar este livro dentro de um único gênero, já que a complexidade da trama e completude da sua narrativa o colocam além do romance policial, de terror sobrenatural ou de conflitos familiares e de interesses. Mesmo estes três itens reunidos não serviriam para definir a obra e acabariam por reduzir o seu valor literário. Wilson produziu um livro onde podem ser identificadas inúmeras vertentes da tradição romanesca; tentar enquadrá-lo numa categoria de maneira a defini-lo mais facilmente, portanto, é tarefa altamente desaconselhável.

Ainda assim, caso o livro alcance alguma repercussão, a autora deve esperar reprimendas por parte de uma ala de críticos e leitores, sobretudo, com relação à ambientação da história e à escolha de personagens suíço-alemães, algo imperdoável dentro dos círculos culturais nacionais. O brasileiro tem uma tradição de deslumbramento em relação ao continente europeu e, como reação a isso, procura afirmar de forma atrapalhada a própria identidade, renegando neuroticamente as influências externas, como se elas representassem uma ameaça pungente à auto-estima nacional, uma convocação sedutora e permanente a se abandonar a sujeira e o primitivismo dos trópicos e se entregar, de uma vez, à paixão arrebatada e reprimida pelos ares faustosos da Europa civilizada. Logo, um escritor brasileiro que, no lugar de voltar o olhar para dentro das nossas fronteiras no sentido de desvendar o próprio país e magnificar o orgulho nacional, optar por retratar uma terra estrangeira sem enxergá-la através de uma ótica brasileira, será sumariamente acusado de produzir uma obra sem identidade, sem nenhum vínculo com a nossa tradição e, portanto, sem qualquer valor. A Suíça de M. L. Wilson é uma Suíça inteiramente alemã, em todos os sentidos. Wilson encontrou uma maneira alemã de falar sobre uma terra - por que não? - alemã. Nada mais adequado. Seria espantoso e, até mesmo assustador, se ela se valesse de um ponto de vista brasileiro para construir um romance passado numa terra tão diferente da nossa. O que algumas pessoas poderão enxergar como demérito, eu vejo como uma grande qualidade. M. L. Wilson soube se apropriar da tradição e da atmosfera de um povo que não é o seu para escrever um romance que reproduz com fidelidade os costumes, o espírito e a linguagem desse povo e da sua terra. Isso denota um talento inegável. Quantos escritores brasileiros serão capazes de tal façanha?

De qualquer forma, agora, que terminei a leitura de Com Quem está Falando Marie Louise?, pressinto que as sombras dessa história sombria e perturbadora me acompanharão por algum tempo. Não é uma perspectiva propriamente agradável, mas é um sinal de que o livro, pelo menos comigo, cumpriu o seu anunciado objetivo.

Para ir além





Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 1/3/2005

 
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