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Terça-feira, 18/10/2005
Bang bang: tiroteio de clichês
Marcelo Spalding

Clichê é um termo não tão conhecido entre o público em geral, mas um conceito absorvido por qualquer leitor, espectador ou ouvinte razoavelmente atento. O garoto que vai num filme de ação já sabe que o herói musculoso vai apanhar muito, mas não morrerá. A senhora entra na fila da comédia romântica da hora com a certeza de um final feliz. E assim a indústria cultural se realimenta com milhares e milhares de histórias que, na verdade, são a mesma história. Até que haja o esgotamento dos clichês. Ou o revezamento deles. Filmes de bangue-bangue com índios bandidos ficaram décadas atrás. Seriados de guerras estrelares só voltam às telas como déjà-vu. Músicas de dupla sertaneja pararam no fim dos anos 90. E assim vai.

Todo este nariz de cera para tentar compreender a Globo e suas centenas ou milhares de novelas. Imagine você ter de produzir tantas e tantas histórias iguais e diferentes ao mesmo tempo. Iguais porque se trata de um gênero específico, uma fórmula conhecida, testada e aprovada por milhões de brasileiros. Diferente porque precisa reatrair a atenção dos que ficaram pelo capítulo cem da novela anterior, precisa pôr na vitrine novos rostos e vender novas ideologias.

É exatamente no diferente que pode surgir algo interessante. Sim, há novelas (ou pelo menos aspectos de algumas novelas) interessantíssimas mesmo para quem já trocou a superficialidade da TV pelo cinema e/ou pelo livro. O Clone nos tirou o medo do islã, Vale Tudo traduziu o sentimento de uma época collorida, Laços de Família narrou com algum bom gosto o dia-a-dia da nova burguesia carioca, Malhação, na sua primeira fase, surpreendeu ao revelar novos valores da juventude multifacetada, Vamp deu uma cara brasileira aos mitos nórdicos, e isso sem falar naquelas novelas que conheço de ouvir falar, como Escrava Isaura, O Bravo, etc.

Aí surgem as vinhetas de Bang Bang, com a promessa de ser mais uma igual-diferente. Por que uma igual-diferente? Primeiro, pelos atores. Segundo, pela proposta narrativa.

(Pra não dizer que não falei dos atores, fiquei no mínimo curioso para ver o que Fernanda Lima e Sidnei Magal eram capazes de fazer na nova função e por que Paulo Miklos se exporia tanto.)

Mas o que interessa aqui é a proposta narrativa. Há tempos a Globo universaliza os temas e, mais recentemente, os cenários. Não são visitas eventuais do elenco a algum cartão postal. Não. É a simulação de que a história se passa no Marrocos (O Clone), nos Estados Unidos (a recente América) ou mesmo num país fictício (Kubanakan). Só que Bang Bang pegaria emprestado não apenas o cenário do oeste norte-americano como a cultura, os clichês e os valores do oeste norte-americano, provavelmente parodiando a clássica luta dos mocinhos e bandidos.

Montada a cena, atores curiosos, cenário inédito, vamos ao jogo. E aí os clichês se acotovelam.

Apesar de parodiar os clichês dos filmes de bangue-bangue, em vez de repeti-los, a novela não se preocupa em usar a exaustão os próprios clichês das novelas. Há o protagonista-mocinho com sede de vingança que encontra na filha do vilão um grande amor. Há homens se fazendo de mulheres. Há um amor mal resolvido entre a viúva do detetive e o malvado fundador da cidade. Há prostitutas lindas, alegres e coloridas. E assim por diante.

Para fazermos justiça com o criador da trama, Mario Prata (foi o autor da novela até pouco tempo atrás), é preciso pensar na sua tentativa de parodiar os próprios clichês dramatúrgicos. Nesse caso, a inclusão de tantos elementos óbvios na novela seria, também, uma forma de parodiar. Mas aí o espectador será o gato correndo atrás do rabo. Porque a novela se propõe um fim em si mesmo, uma comédia da própria história. Como alguns filmes hollywoodianos têm feito, e talvez Shrek seja o mais bem resolvido deles.

Acontece que, ao não se levar a sério, a novela perde o que John Gaarder, escritor e teórico da literatura, chama de sonho ficcional. Nem o menos exigente telespectador agüenta que Diana se apaixone por Ben apenas porque o rapaz foi macho o suficiente para exigir que lhe dessem carona na diligência. Nem que dois moribundos, à beira da morte, se levantem da cama para matar um ao outro com as próprias mãos, e acabem morrendo ali, juntos, abraçados.

De certo a novela vai adiante nesse ritmo frenético. Kubanacan e O Beijo do Vampiro já foram assim, não se levavam a sério. No caso de Bang Bang ficam, pelo menos, algumas tentativas curiosas, como a de mostrar a invenção do presente: a cena em que o médico local faz a primeira transfusão de sangue deve ter muito de impropério médico, mas é divertida. A "abdução" do personagem Zorro para dentro da novela também é algo novo e que pode funcionar, assim como a figura emblemática de Paulo Miklos se esforçando em fazer caretas.

Resta saber quando as novelas irão evoluir além da narratividade. Quando, além de dinâmicas e bem produzidas, serão minimamente profundas. Quando irão parar de vender as mesmas ideologias do tempo da vovó e da mamãe. Ou quando, de tão repetitivas e iguais a si mesmas, farão o milagre de mandar crianças, adolescentes e adultos para fora da sala, gritando: "ora, vão ler um livro e não me encham!".

Resta saber qual de nós sacará primeiro a arma e vai disparar contra o televisor.

Marcelo Spalding
Porto Alegre, 18/10/2005

 
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