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Terça-feira, 11/4/2006
Em defesa de Harry Potter
Luis Eduardo Matta

Hoje em dia, virou mais ou menos um lugar comum a máxima de que os jovens não gostam de ler. Trata-se, a meu juízo, de uma tese um tanto discutível, pois ela sugere um estado de coisas imutável, quando a realidade da condição humana aponta justamente para a direção oposta. Ou seja: somos seres em permanente transformação, num mundo que experimenta mudanças a cada segundo. Em geral, quando se fala da tal aversão dos jovens pela leitura, a impressão que fica é a de que esta é uma circunstância definitiva, irreversível, o que está longe de ser verdade. Talvez exista, isso sim, uma má comunicação entre os jovens e os livros, motivada, sobretudo, por uma forma equivocada de se encarar a leitura e de se ensinar Literatura nas escolas, o que é especialmente verdade no caso do Brasil. Nosso país, claramente, não fez uma opção pelo conhecimento e hoje, acossado pela pobreza e por problemas estruturais gigantescos e de difícil solução, ressente-se de tantos anos de negligência na área educacional e cultural.

Quando afirmo que a leitura é tratada no Brasil de forma equivocada, refiro-me, principalmente, à aura quase sagrada que ainda cerca, no imaginário popular, o ato de ler. Como se ser um intelectual (ou julgar-se como tal) e possuir uma mente brilhante e genial fossem pré-requisitos imprescindíveis para se embrenhar pelas páginas de um livro. Isso apenas ajuda a aprofundar a distância entre as pessoas e a leitura, pois a maioria acaba não se sentindo à altura de um exercício tão distinto e elevado. É algo parecido ao que ocorre com o vinho. De uns tempos para cá, tornou-se mais ou menos comum o culto ao vinho, como uma bebida nobre, elegante e de apreciação complexa. São tantos os conhecimentos prévios apregoados para se saborear um vinho comme il faut (tipo de copo adequado, qual o vinho recomendado para acompanhar cada prato, temperatura apropriada, com quanta antecedência as garrafas devem ser abertas para "respirar", etc.), e tão numerosos e complicados os rituais que cercam a degustação da bebida, que as pessoas sentem-se intimidadas e, uma vez temerosas de cometer alguma gafe por não obedecer fielmente a tantas regras tidas pelos sommeliers como imprescindíveis, acabam optando por não tomar vinho em público, preferindo a cerveja e a caipirinha, que dispensam a pompa e podem ser apreciadas naturalmente, sem nenhum embaraço. Do mesmo modo, um potencial leitor, ao se defrontar com uma infinidade de normas relativas à leitura e com uma série inacreditável de mandamentos do "bom leitor", que vão desde os autores "obrigatórios" que devem ser lidos e relidos, até toda a gama de conhecimento e crescimento intelectual e pessoal que ele deverá arrecadar no seu mergulho na chamada boa Literatura, provavelmente, achará mais fácil deixar os livros e o seu excessivo cerimonial de lado e correr para a televisão e para os jogos no computador, já que com estes ele poderá estabelecer uma intimidade que a Literatura, do alto do seu solene e inexpugnável pedestal, lhe nega.

É com base nesta constatação, óbvia para qualquer pessoa disposta a enxergar a realidade objetivamente, que eu erijo aquilo que passei a denominar como "meu plano diretor de leitura". Tenho absoluta convicção de que o Brasil jamais se desenvolverá plenamente, proporcionando à população as oportunidades e as prerrogativas a que ela tem direito e com as quais todos sonhamos, sem um investimento maciço em cultura e numa educação universal e de altíssima qualidade, onde o livro e a leitura cumpram um papel decisivo. Ou seja; sem leitura, o Brasil não vai para frente. Não sei de nenhum país do mundo, com exceção de algumas monarquias do Golfo Pérsico premiadas pela abundância de petróleo, que tenha crescido e atingido um alto índice de desenvolvimento humano, com um povo à margem do conhecimento, com baixo apreço pela leitura e refém da própria ignorância. E se leitura se aprende na escola, nossas salas de aula precisam entender que o mundo dos livros só entra de fato nas nossas vidas, quando é incorporado no nosso dia-a-dia naturalmente, como uma atividade de lazer e jamais como uma obrigação curricular. No Brasil, infelizmente, ainda é comum, na maioria das escolas onde há aulas de Literatura e, sobretudo a partir da 6ª série, a velha prática de obrigar o aluno a ler um livro com o qual ele dificilmente terá alguma afinidade, seguido de um teste maçante de avaliação. Em boa parte das vezes, isso cria nos jovens uma forte ojeriza aos livros, que se perpetua pelo resto da vida, contrariando o propósito fundamental de qualquer aula de Literatura que deveria ser o de estimular a paixão pela leitura. Como formar leitores nessas circunstâncias?

Apesar do cenário adverso, não devemos perder as esperanças. Afinal, há que ter em conta que os jovens gostam, sim, de ler e o fazem com a maior alegria desde que vejam na leitura um atrativo. Prova maior disso é o fenômeno Harry Potter. Desde o lançamento, há seis anos, do primeiro título da série, Harry Potter e a Pedra Filosofal (Rocco; 263 páginas; 2000), milhões de exemplares foram vendidos em solo brasileiro e, por meio deles, muitos adolescentes ingressaram no mundo da leitura. Para mim é inesquecível a lembrança de uma visita que fiz a uma amiga brasileira na Alemanha no começo de 2002. Sua filha pré-adolescente havia feito aniversário e pediu de presente um exemplar, em português, do então recém-lançado Harry Potter e o Cálice de Fogo (Rocco; 584 páginas; 2001). Quando cheguei ao prédio onde elas moravam, num aprazível bairro residencial de Hamburgo, a menina, ansiosa para ler o livro, desceu afoita ao meu encontro e, agradecida, tomou em suas mãos o livro. Era evidente a sua alegria naquele momento. Na tarde seguinte, minha amiga telefonou para contar que a filha já tinha lido todo o livro. Notem: era um livro de centenas de páginas e a menina leu em um dia. Não é preciso ser um adivinho para deduzir que ela também devorou todos os demais títulos da série. Se isso não é um incentivo e tanto para transformar um jovem num amante da leitura, sinceramente, não sei o que é.

Como sempre acontece com livros que são sucesso de vendas e caem no gosto popular (independente da sua qualidade), o fenômeno Harry Potter atraiu a ira cega de muita gente. A autora, Joanne K. Rowling, foi acusada de produzir subliteratura barata ao se apropriar de toda a simbologia das antigas histórias de bruxas e de magia e dar-lhe uma roupagem moderna, despida de profundidade e sem qualquer critério. Inúmeros foram os críticos e escritores a atacar a escritora sem piedade, muitos inclusive admitindo textualmente nunca terem lido uma única página sequer do que ela escreveu. É notório o caso de uma grande editora de São Paulo que, num dos lances mais desastrados da recente história editorial brasileira, recusou veementemente o primeiro livro da série, após submetê-lo à avaliação preconceituosa de uma parecerista ligada a uma importante universidade daquela cidade. O próprio Harold Bloom, um dos mais conceituados críticos literários em atividade no mundo, já se incumbiu de desqualificar Harry Potter, afirmando tratar-se uma obra de segunda categoria, com uma linguagem pobre e repleta de clichês. Bloom rechaça, por exemplo, a tese de que os livros da série seriam um bom meio de despertar nas crianças o interesse pela Literatura, alegando que Harry Potter não é capaz de formar mais do que leitores de best-sellers, como Stephen King (que ele odeia) e, desse modo, estaria longe de ajudar a apresentar aos jovens aquilo que ele considera como a verdadeira Literatura.

O problema na assertiva de Bloom é o próprio fundamento da sua teoria, um tanto desconectada da realidade. Bloom fala como se o dilema estivesse entre formar leitores de best-sellers e leitores de obras-primas da Literatura, quando a questão, na verdade, se divide entre formar leitores de best-sellers e não formar nenhum leitor. Ou seja, o adolescente não vai deixar de ler um Harry Potter para ler um Marcel Proust. Além do mais, é sabido que a leitura regular, ainda que apenas de best-sellers, traz inúmeros benefícios ao leitor, tais como capacidade de concentração, rapidez de raciocínio, familiaridade com a palavra escrita e com o idioma no qual se está lendo. Portanto, se os jovens estão se iniciando nos livros, a partir de Harry Potter, devemos ficar felizes, pois a outra opção para muitos deles seria nunca ler nada, o que é infinitamente pior. Se esses jovens irão se tornar unicamente leitores de best-sellers no futuro, só eles poderão decidir. Afinal, o livre arbítrio de cada um na hora de escolher o que ler é algo que deve ser respeitado e aceito e quem é capaz de garantir que muitos dos leitores de Harry Potter não irão, no futuro, se aventurar, também, pelos clássicos?

Uma coisa, porém, creio que todos nós, envolvidos com a cadeia de produção do livro e empenhados na sua difusão, temos a aprender com o fenômeno Harry Potter: a maneira espontânea como ele entrou na vida dos jovens é a mais eficiente para conquistar leitores naturalmente. E que a leitura só existe e se multiplica, quando é prazerosa, despida de todo o cerimonial e de toda a chatice que norteia o ensino de Literatura no Brasil. Seria maravilhoso caso a saga do bruxinho de Hogwarts conseguisse abrir os olhos dos nossos educadores e acadêmicos para a realidade e as necessidades dos jovens contemporâneos e, assim, ajudasse a revolucionar o ensino de Literatura nas nossas escolas, condição fundamental para a democratização de fato do livro no Brasil.

Nota do Editor
Leia também "Formando Não-Leitores".

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 11/4/2006

 
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