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Sexta-feira, 30/6/2006
Alberto Caeiro, o tal Guardador de Rebanhos
Julio Daio Borges

"(...) E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."

Alberto Caeiro

A poesia é um dos gêneros literários mais maltratados hoje. Todo mundo essencialmente acha que, dadas as devidas condições de temperatura e pressão, pode sair por aí "poetando" (aliás, ô verbinho horroroso). Fazer poesia, para muitas pessoas, é como abrir uma determinada válvula e passar a liberar - feito gás - seu mau gosto.

Poeta, então, é qualquer coisa. Ou qualquer um que desperte, nos outros, uma sensibilidade mais recôndita. Assim, desde o cameraman até o subproduto de rock, todos, de vez em quando, são apontados como "poetas" por algum tolo ignorante.

Fazer poesia e ser poeta, atualmente, tem pouco a ver com conhecer uma tradição poética e exercitá-la.

Vinicius e Leminski propagaram a noção errada de que basta estar sentado à mesa de um bar, suficientemente alcoolizado, para rabiscar guardanapos e produzir, num rompante, um "Soneto da Separação". Vale dizer que, para muita gente séria, só vale - como poeta - o Vinicius de Moares da primeira fase (que não tem nada a ver com esse retrato); e que Paulo Leminski não passou de um fazedor de slogans (um marqueteiro que nunca devia ter saído das agências de propaganda).

Os "poetas" de hoje, claro, se esquecem - e vão vender seus garranchos em frente ao Masp, no intervalo das salas do Espaço Unibanco ou nos botecos da Vila Madá... Não compre: não tem nenhum valor. Ou, se é para fazer desse jeito, peça a sua cerveja e cometa, ali mesmo, de próprio punho, uns poemas também. Provavelmente não terão, igualmente, nenhum valor, mas certamente apelarão mais à sua sensibilidade.

Fernando Pessoa, vamos ser francos agora, é um pouco responsável por esse estado de coisas. João Cabral de Melo Neto nunca o perdoou por transmitir a falsa sensação de que fazer poesia não custava nada. É de Ana Cristina Cesar - da mesma leva do Leminski - a conclusão de que, depois de ler Pessoa, todo mundo acha que é... Fernando Pessoa.

Os modernistas todos, ao instituir o verso livre (sem métrica) e o branco (sem rima), sem querer espalharam a crença de que, como não havia mais parâmetros, era poesia qualquer coisa escrita em primeira pessoa, e era poeta qualquer semi-analfabeto que amanhecesse "diferente", assassinando versos, mais contente ou mais choroso.

Conseqüentemente, é espantoso que a nossa sensibilidade poética não tenha sido para sempre estragada, depois de tanto poeta que não vale um centavo e de tanta poesia literalmente vagabunda. Por incrível que pareça, há esperança.

E há esperança, justamente, no que é tão óbvio e está logo ali ao lado. Estou falando de Alberto Caeiro, o popular "Guardador de Rebanhos" de Fernando Pessoa.

Pessoa, somos ensinados na escola, era aquele sujeito dos heterônimos. Grande coisa. Qualquer esquizofrênico de chat de internet (ou de blog) pode ter múltiplas personalidades. Em Pessoa - na escola esqueceram de contar - a poesia é que vale. O resto pode jogar tudo fora. OK, ele escreveu em forma de heterônimos, mas isso não deveria ser, em nenhum momento, a coisa mais importante.

E para começar a ler Fernando Pessoa - e até poesia, se você quiser -, eu indicaria o Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, mais alguma coisa dos Poemas Inconjuntos, e um ou outro "fragmento" (esqueça O Pastor Amoroso, que é por demais... xaroposo?). Ricardo Reis - Pessoa mesmo escreveu - é "disciplina mental", Álvaro de Campos é muita "emoção" e Bernardo Soares cansa com aquela insistência dele no "sonho" (isso sou eu mesmo que estou falando, tá?). Caeiro deve ser a sua porta de entrada para a poesia de Fernando Pessoa.

É engraçado encontrar em Caeiro muitos dos lugares-comuns atribuídos a Pessoa, que, sempre fora do contexto, é moda citar. Como: "Não tenho ambições nem desejos/ Ser poeta não é ambição minha/ É a minha maneira de estar sozinho". Ou como: "Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo...". Ou ainda: "Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos./ Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer".

Antes que você interprete como se costuma interpretar (conforme o gosto do cliente), vale esclarecer que o primeiro trecho não é um convite - direcionado aos solitários - à poesia. Se fosse assim, os maiores poetas seriam os cobradores de pedágio. Depois, o segundo trecho não indica que Caeiro, ou Pessoa, seja um novidadeiro fashion. O que ele quer dizer é que, para quem tem olhos como os seus, a novidade pode estar em qualquer lugar. Por último, o terceiro trecho não é - hello, hedonistas - um reforço à máxima do carpe diem. "Aqui" e "agora", para Alberto Caeiro, não querem necessariamente dizer uma festa ou uma rave: pode ser um ponto de ônibus, uma fila do INPS ou mesmo uma prova do vestibular.

Alberto Caeiro, se costuma afirmar, é um "poeta da natureza". Mas não um ecopoeta (chato), que curte esportes de aventura ou que se preocupa com a camada de ozônio, com os índios ou com a floresta amazônica. Ele tem a natureza dentro de si, como um estado de espírito. Assim, ele diz: "O único sentido íntimo das cousas/ É elas não terem sentido íntimo nenhum". Ou ele diz: "O meu misticismo é não querer saber./ É viver e não pensar nisso". Ou, ainda, ele diz: "O único mistério é haver quem pense no mistério". Para terminar: "Há metafísica bastante em não pensar em nada". (Você não sabe o que é metafísica? Como quer ser poeta então?!)

Pessoa considerava Caeiro uma de suas maiores criações. Porque ele era um "pensador", mas, ao mesmo tempo, era antifilosófico. Como Clarice Lispector escreveria depois, ele procurava "viver" e "dispensar todo entendimento". Não menciona Nietzsche em nenhum ponto, mas seguramente acreditava também num retorno às coisas naturais. Como Descartes, procurou se "despir" de todo conhecimento, de todo aprendizado e encarar a vida como se o mundo estivesse apenas começando. Como Heidegger, enxergava no homem um "descolamento" em relação à natureza, mas, ao contrário deste, não aceitava bem o fato e propunha uma volta, uma reintegração. (Ambos tinham como contraponto o reino animal, que nunca "pensa" em nada, simplesmente está lá.) Talvez a maior ambição de Caeiro fosse morrer como Espinosa, perfeitamente integrado ao todo - como um santo.

Pessoa - conta-nos o posfácio - planejava, para Caeiro, algo retumbante. Como era seu costume, antes mesmo de que seus versos viessem à tona, tratou de redigir, para ele, alguma fortuna crítica. Em inglês, anotou: "Caeiro is the only poet of Nature. In a sense he is Nature: he is Nature speaking and being vocal". E, para dissipar todas as nuvens, completou: "Caeiro has created (1) a new sentiment of Nature, (2) a new mysticism, (3) a new simplicity".

Como muito do que Alberto Caeiro produziu, grande parte desses versos permaneceu no famoso baú de Fernando Pessoa, com uma ou outra aparição em revistas. Pessoa ele mesmo - ao contrário de nossos "poetas" contemporâneos - tinha sérias dúvidas sobre seu valor e, como sabemos todos, publicou um único livro em vida. É possível que tivesse assimilado, do "mestre" Caeiro, ainda uma última lição: "A realidade não precisa de mim".

"Diferente de tudo, como tudo."
Alberto Caeiro

Para ir além





Julio Daio Borges
São Paulo, 30/6/2006

 
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