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Quarta-feira, 16/8/2006
Inutilidades e pianos
Ana Elisa Ribeiro

Tia Lígia

Minha melhor amiga tem uma tia chamada Lígia. A tia Lígia é esposa de um desses caras que passaram a vida se mudando de cidade, de estado, por causa do emprego. Não sei se é funcionário público, do tipo auditor da Receita. Ou se é gerente de banco. Não sei. Mas o cara vivia pulando de galho em galho e a tia Lígia ia atrás. Do mesmo jeito que ela mal conseguia esquentar o assento, ela tinha lá suas mordomias. O empregão do maridão valia as penas previstas. Quando se casou, tia Lígia não sabia que seria assim, tão nômade, mas bem que gostava de ter grana de sobra, fazer boas viagens, ter bons casacos e criar os dois pimpolhos, nascidos entre uma estrada e outra, com mimos de mamãe ricaça.

Tia Lígia nem era muito apegada a nada. Era um transtorno fazer mudança, tirar menino da escola, matricular de novo, arrumar novos amigos para jogar buraco, essas coisas. Mas o maior problema de tia Lígia era o piano. Aquela coisa enorme pra lá e pra cá. E tia Lígia não largava a mão.

O trambolho carcomido por cupins estetas, o diabo do piano que ela punha na sala de toda casa em que morava. Mandava trazer o piano, depois mandava chamar o afinador de pianos, que cobrava uma fortuna. Mas tia Lígia não abria mão do piano. Ele tinha que ser o cenário de toda sala de estar em que tia Lígia morava. O mais interessante, no entanto, era que ninguém em casa, nem tia Lígia, sabia tocar piano.

Antônio

Eu tenho uma amiga casada há muitos anos. Ela é loura, magra, dos olhos tão azuis que deixam a gente cego. Os olhos dela parecem sempre bem cedo. Ela é professora e tem uma fala muito mansa.

A Áurea, minha amiga, é esposa do Antônio, que também é professor, só que de outro lugar. O Antônio teve uma vida difícil, cheia de arritmos que ele não deixou que se metessem nos planos dele. Antônio estudou, trabalhou, casou com a Áurea e teve dois filhos.

A infância do Antônio foi complicada. O pai saiu, a mãe desistiu, a avó reagiu como podia. Antônio cresceu, leu, escreveu e virou professor. Comprou um lote, construiu uma casa e expandiu os planos. Criou os meninos e mudou de vida, junto com a Áurea. Mas embora tudo isso pareça muito evoluído, tem uma coisa que Antônio não saciou na vida: a vontade de tocar piano.

Aquele instrumento grande, bonito e imponente lhe parecia uma jóia de fazer música. O som do piano e os pedais davam em Antônio uma paixão diferente. E bem que Antônio tentou. Insistiu, pediu, sugeriu, insinuou. Queria aprender a tocar piano. Mesmo com toda aquela agenda: "tocar piano bem leva 15 anos". Tempo não era problema para Antônio, ele era vivo que nem gente.

Antônio não desistia. Queria tocar. Não precisava nem dizer outra coisa. Não servia. O piano era o instrumento de cordas mais bonito do mundo. Até que um dia Antônio resolveu pedir. Atravessou, um dia, o caminho da avó e disse, com todas as notas: quero um piano. A avó sorriu. Teve uns dias para pensar. Todo corredor da casa era esconderijo. Antônio sonhava acordado, já tinha planos até de onde pôr o piano. A avó pensava e sofria. Onde já se viu? Um piano no meio da casa? Casa pequena, quarto, sala, banheiro. Onde enfiar um piano? Bobagem de menino que não sabe de nada. Antônio não teria tempo nem dinheiro para ter aulas de piano. Fazer o quê com aquele elefante branco?

Mas Antônio não desistiu. Pediu mais uma vez. Quero muito um piano. E a avó pensou em sanar o problema. Pôs Antônio na aula de datilografia.

Ana

Minha infância foi cheia de instrumentos musicais. O pai tinha o sonho de tocar teclados eletrônicos. Achava lindo. Piano não, porque demora demais a virar pianista, mas teclado é diferente, mais prático, mais rápido. E ler partitura? Era quase um segredo. Até que um dia o pai entrou numa escola de música. Aprendeu muito. Comprou teclado, modelo novo, teclado de móvel ou portátil. A casa cheia de música.

O irmão tocava flauta. Diz a mãe que flauta doce é o instrumento ideal para criança. Musicalização. Solfejo. Sabe solfejar. Daí eu também quis. O curso era o Leila Fletcher. Piano. Eu pedi uma guitarra, mas ganhei o curso de piano.

A professora ensinava a ler partitura e a entender arranjos. Também espetava meus pulsos quando eu os deixava caídos sobre as teclas. Piano é bonito, não posso negar. Mas o piano não era a minha praia. Pedi a guitarra.

Depois veio o professor de violão. Mas como é que eu ia aprender a tocar "Atirei o pau no gato"? Queria tocar muito em dois meses. Ansiedade, calos, cortes, cordas. Foi-se o violão. Mais tarde veio a bateria. Queria tocar Rush em um mês. Pudera. Ninguém quer que um adolescente ganhe uma bateria. Fiquei assim, treinando no colchão da cama, sujeita a batucar nas panelas. Nem isso.

De repente, o clique. O melhor instrumento é aquele que já nasce comigo. Então veio o canto. Esse, sim, atravessou as vontades todas da família. Cantar é bonito, mais do que piano. Um por um, todos juntos, e teríamos formado uma banda, cada um com seus sonhos musicais de infância.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 16/8/2006

 
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