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Sexta-feira, 1/9/2006
A paixão segundo Gero Camilo
Guilherme Conte

De acordo com o dicionário Houaiss, a paixão é um "sentimento, gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a razão; grande entusiasmo por alguma coisa; atividade, hábito ou vício dominador". No universo de Cleide, Eló e as pêras, o mais recente espetáculo de Gero Camilo, todos esses registros são possíveis. A razão, ali, não tem muito espaço. Quem manda é o coração, para o bem e para o mal.

O espetáculo é o último fruto de A Macaúba da Terra, livro de Camilo lançado em 2002, a ser levado aos palcos. Histórias que se entrelaçam para mostrar os desvarios a que os corações dos amantes se submetem. Três momentos de profunda poesia e erotismo latente.

Eló nos é apresentado por sua amante, que por ele perdeu a razão e o rumo. Paula Cohen, sentada em uma cadeira, nos conta seu drama como um amigo revela a outro. "Eló passava e os sorrisos da gente e das calçadas abriam-se junto com o sol." Exposta, resignada, apaixonada. Comedida, tenta segurar seus sentimentos com mão firme. Estes, no entanto, deixam-se escapar por entre os dedos e nos contagiam pouco a pouco.

Em seguida, Gero, em boa atuação, vem-nos contar da razão de sua desventura. Vigia de uma fábrica de costuras em uma pequena e pacata cidade na beira de um monte, apaixona-se loucamente por Cleide, uma novata no serviço. Daquelas paixões fulminantes e arrasadoras, que tiram qualquer um de nós do sério.

"Olhar de Cleide é que nem umbigo, é redondo e fundo, desses que quando a gente vê já tá dentro". Não há como não se compadecer com o pobre vigia, pequeno frente a um sentimento tão gigantesco, quase agressivo. Tornamo-nos, em ambas as histórias, cúmplices daqueles apaixonados. Nos encantamos junto com eles.

Mas é na terceira história que a sexualidade latente realmente atinge níveis quase bélicos. Cleide e Eló se cruzam, sabedores das histórias um do outro. A sedução corta o ar e parece dançar pelo palco. Os dois como que jogam, se estudam, se medem. Sabem que não podem se entregar. E, no fim, tudo vira poesia.

O mesmo Houaiss apresenta, como sinônimos de paixão, "mania" e "martírio". E, como antônimos, "desleixo" e "indiferença". É esta a paixão de que trata o brilhante texto de Camilo. Uma vontade doída, que nos arrebata do chão e nos põe a serviço do ser amado. Nada mais importa.

É, portanto, um querer incompatível com desleixo e indiferença. Pressupõe uma entrega e uma dedicação que só quem já foi vítima dessa vontade conhece. Aquela falta de limites, um desejo pelo outro que supera qualquer senso de razão ou dignidade. Passamos a viver por aquela paixão.

Se há alguma reserva a se fazer, está na delicadeza de Gero na segunda história, incompatível com a crueza do personagem. Mesmo assim, ele encanta. Pequeno e franzino, assume feições gigantescas quando está no palco. Tem aquela fluidez nordestina para contar histórias que faz os fatos mais banais se tornarem as coisas mais importantes do mundo. E seu sorriso desmonta qualquer um.

Um texto belíssimo, na mão de dois talentosos atores e sob a direção de Gustavo Machado, que além de grande ator mostra-se um competente diretor. Extrai belas imagens das palavras de Camilo, sobretudo na terceira história, com as sensuais pêras.

Espetáculo verdadeiramente encantador. Aos que têm um coração particularmente sugestionável, recomenda-se cautela. Há o risco de se sair do teatro com uma séria predisposição ao amor.

Para ir além
Cleide, Eló e as pêras - SESC Paulista - Av. Paulista, 119 - Paraíso - Tel. (11) 3179-3700 - R$ 15,00 - Sexta a domingo, 20h30 - Até 03/09.

Obs.: o espetáculo reestreou no TBC (R. Major Diogo, 315, Bela Vista, tel. (11) 3104-5523). Sábado às 21h e domingo às 20h. R$ 20,00. Até 15/10.

Circuito

* Voltou aos palcos a ótima Assombrações do Recife Velho, de Newton Moreno sobre livro de Gilberto Freyre, com os talentosos pernambucanos da Cia. Os Fofos Encenam. É um desfile de aparições fantasmagóricas, "amarrado" pelas perambulações de um pesquisador. Vale sobretudo pelas esmeradas atuações, cheias de colorido regional.

SESC Santana - Av. Luiz Dumont Vilares, 579 - Santana - Tel. (11) 6971=8700 - Entre R$ 4 e 10 - Sábado e domingo, 19h - Até 10/09.

Guilherme Conte
São Paulo, 1/9/2006

 
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