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Sexta-feira, 17/11/2006
Um quarto com vista
Rafael Rodrigues

Poucos são os escritores que conseguem êxito tanto na literatura de ficção quanto na crítica literária. Na maioria dos casos, o sujeito é excelente ficcionista, mas um crítico mediano. Ou vice-versa.

(Existem ainda aqueles que não são bons nem em uma área nem em outra, mas isso não vem ao caso agora.)

O britânico E.M. Forster (Edward Morgan) encontra-se no grupo da minoria. Pois, além de ser reconhecido como um grande estudioso da literatura (seu Aspectos do romance é constantemente indicado para iniciantes e estudiosos de crítica literária), é também autor de admiráveis obras de ficção.

Uma delas é o romance Um quarto com vista (Globo, 2006, 228 págs.), recentemente reeditado no Brasil. Escrito em 1903 e publicado em 1908, Um quarto com vista é um livro corajoso. Isso porque, de certa forma, é um incentivador do feminismo.

Antes de continuar com a resenha, um parêntese. O movimento feminista não é fruto do século XX ou XIX, apesar de ter tomado corpo nestes séculos. O início do movimento vem de muito antes, do século XV, quando a escritora francesa Christine de Pizan publica o livro A cidade das mulheres, no qual defendia a opinião de que as mulheres deveriam ter mais poderes e direitos na sociedade. O fato é que o feminismo se consolidou como movimento e conquistou suas maiores vitórias já no século XIX. E, se ainda hoje as mulheres continuam lutando por seus direitos e enfrentam preconceitos, imaginemos então o início do século XX, quando foi publicado o romance de Forster...

Voltando ao livro. Lucy, a protagonista, é uma bela jovem inglesa que faz uma viagem para Florença, na Itália, com sua prima Charlotte. Ao chegarem na pensão em que passariam suas férias, notam que os quartos a elas destinados não foram os quartos a elas prometidos. A dona do estabelecimento prometera quartos com uma bela vista, mas entregou às duas jovens quartos distantes um do outro e com vista para o pátio da pensão.

A discussão entre as duas sobre isso chega aos ouvidos de um dos outros hóspedes, o senhor Emerson, que logo propõe uma troca de quartos com as duas: elas ficariam com os quartos dele e do filho, ambos com vista, e eles ficariam com os quartos delas.

Depois de muita conversa (para Charlotte, fazer a troca com os Emerson faria com que, mais cedo ou mais tarde, elas fossem obrigadas a devolver a gentileza de alguma maneira, e ela não achava prudente ter essa "obrigação"), e da intervenção do senhor Beebe, sacerdote inglês conhecido de Lucy e Charlotte, que também está de férias em Florença, hospedado na mesma pensão que elas, a troca de quartos é realizada.

Esse fato, aparentemente insignificante, é o que torna possível uma série de acontecimentos, que determinarão o desfecho do livro. Mas é claro que isso eu não vou contar.

Os acontecimentos na viagem fazem com que Lucy se deixe ser mais flexível e pense em aceitar o que a sociedade determina. E ela, que havia duas vezes recusado o pedido de casamento do jovem Cecil Vyse, aceita a proposta, na terceira investida do rapaz.

Por obra do acaso (ou não), Cecil também conhece o senhor Emerson e seu filho, George, e acaba sendo o responsável por eles irem morar bem próximos da residência de Lucy. Mal sabe Cecil que, ainda na Itália, algo acontecera entre Lucy e George. Algo que já estava para ser esquecido por Lucy, mas que, por "culpa" de Cecil, será relembrado.

Conviver com Cecil faz Lucy voltar a ser a mulher que era quando foi à Florença: à frente de seu tempo, deseja ser independente, e muitas vezes contraria de propósito as vontades de seu noivo e de sua mãe. A presença de George faz Lucy romper o noivado com Cecil. Mas ao ter de se decidir entre dois pretendentes, a saída mais tentadora é não ficar com nenhum, e assim ser livre de qualquer amarra.

Disfarçado de uma inocente e divertida história de triângulo amoroso, narrado como se uma comédia romântica, Um quarto com vista é bem mais do que isso. E.M. Forster faz uma análise de burguesia inglesa do início do século XX, denunciando suas fraquezas, hipocrisias e dogmas.

Ele se vale dos vários personagens para alfinetar cada segmento da sociedade. A mãe de Lucy, por exemplo, uma mulher que, nos dias de hoje, seria a famosa "perua". Segue todas as regras da alta sociedade e quer que a filha faça o mesmo. Cecil, uma extensão da mãe de Lucy e da burguesia inglesa, sempre achando-se o dono da razão. Já o senhor Beebe, a meu ver, demonstra o ideal que Forster tem do clero. O senhor Beebe é um homem bem-humorado, maleável - quando pode ser -, sensato e de mente aberta. Qualidades difíceis de encontrar, todas elas reunidas, em qualquer ser humano. E há outros personagens menores, mas que também são retratos de uma época (de todas as épocas, eu diria), como a tresloucada senhorita Lavish, uma escritora que está na mesma pensão em Florença e não tem o menor pudor de colocar em seu novo livro, e até de tentar manipular, parte das vivências de Lucy na cidade italiana. O impressionante é que, vistas sob a luz de nossos dias, em pleno século XXI, as críticas de Forster sejam tão atuais e contundentes.

E.M. Forster, pelo escritor que é, pela importância que tem e pelos livros que escreveu, merece mais que uma simples resenha. Merece mesmo é um ensaio. Esta edição de Um quarto com vista não traz um ensaio sobre o autor e sua obra, mas conta com um texto de Luiz Ruffato sobre o livro. O que não deixa de ser, tendo também em vista a importância de Ruffato em nossa literatura, uma bela homenagem ao escritor inglês.

Para ir além

Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 17/11/2006

 
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