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Terça-feira, 23/1/2007
Uma (selvagem?) celebração literária
Jonas Lopes

Eu li Os detetives selvagens (Companhia das Letras, 2006, 624 págs., tradução de Eduardo Brandão), o calhamaço do chileno Roberto Bolaño, pela primeira vez, no final de outubro do ano passado. A intenção era escrever uma crítica do livro. Gostei dele, sobretudo da primeira e terceira partes, o diário de um jovem poeta mexicano, García Madero. A segunda parte, que compreende mais de 400 páginas do volume, é formada apenas por depoimentos, uma série deles, de dezenas de pessoas. Achei um exagero tantos depoimentos, e me preparei para escrever uma resenha favorável, porém com algumas ressalvas.

Por motivos pessoais, que envolveram uma mudança de cidade, acabei adiando o texto por mais de um mês, e cheguei a resolver que não o escreveria mais. Até que um dia, depois do Natal, vi o livro parado na escrivaninha e resolvi reler alguns trechos. Não fiz uma leitura linear: comecei justamente pela segunda parte, a que havia achado exaustiva, e ainda assim de forma não-linear, escolhendo os depoimentos ao acaso. E Os detetives selvagens foi crescendo, minha avidez aumentando e, por fim, praticamente reli o romance em ordem aleatória.

Todo bom leitor sabe o quanto tem se tornado mais difícil manter uma agenda de leitura razoável. Os lançamentos se acumulam nas lojas, prateleiras e estantes, e a única forma de conseguir assimilar tantos quitutes e matar a vontade e a curiosidade é lendo, lendo, lendo, cada vez mais rápido. O que pode ser prejudicial. Cada livro pede e exige de nós um tempo e um ritmo diferentes. É complicado ler, da mesma forma, Grande Sertão: Veredas e uma novela policial. Isso é ainda mais grave no caso dos resenhistas (e nenhum deles está a salvo), que para acompanhar o ritmo das publicações, precisam ler e escrever sobre aquela obra em um espaço muito curto de tempo. Os textos acabam rasos. O ideal seria que o crítico não apenas tivesse mais tempo, mas que também pudesse voltar ao livro mais tarde. Já foi o tempo em que intelectuais como Otto Maria Carpeaux e Álvaro Lins escreviam grandes e profundos ensaios sobre, por exemplo, Graciliano Ramos, poucos meses depois que um de seus romances foi lançado. Agora, os jornais e revistas cobrem o lançamento e a obra morre ali, no calor do gancho jornalístico, sem chance de ser retomada com mais calma e acuidade. E se eu não tivesse, por um mero acaso, retornado a Os detetives selvagens, teria ficado com uma opinião pior sobre ele. O que seria uma pena.

Roberto Bolaño é um daqueles autores cuja arte imita a vida. Nascido no Chile em 1953, mudou-se durante a adolescência com a família para o México, onde, ainda muito jovem, participou da nova cena de autores mexicanos. Bolaño voltou ao Chile em 1973, e acabou preso pela ditadura de Pinochet. Solto, outra vez foi ao México. Surge nessa época o movimento Infra-Realista, que pretendia quebrar parâmetros literários e romper com as gerações anteriores. Em 1977, muda-se para a Espanha. Apenas na metade da década de 90 Bolaño consegue começar a publicar. Começa então uma avalanche, e em poucos anos coloca nas ruas romances, novelas, coletâneas de contos e poemas. Boa parte de tudo isso abordando as conseqüências do Golpe Militar de Pinochet, caso da novela/monólogo Noturno do Chile (já lançada no Brasil), e as reviravoltas das cenas literárias mexicana e chilena, caso de Os detetives selvagens. Sofrendo de graves problemas hepáticos, o chileno faleceu em 2003, com apenas 50 anos. Seu último trabalho, o gigantesco (mais de mil páginas) 2666, resultou inacabado.

Imprecisões bem-vindas
Poderia ter acontecido em qualquer lugar, inclusive no Brasil: um grupo de poetas, todos jovens e revoltados com os rumos das letras nacionais, juntam-se e formam um grupo (ou, no pior dos casos, "movimento", como os chatos da Geração 90 e quejandos) para tentar trazer uma nova e renovada visão artística e negar a(s) anterior(es). O Infra-Realismo liderado por Bolaño aparece em Os detetives selvagens como realismo visceral, organizado pelos emblemáticos e adorados Ulises Lima e Arturo Belano (alter ego do autor). Entramos em contato com os real-visceralistas mexicanos através do diário de García Madero, de apenas 17 anos. Ali acompanhamos as desventuras que costumam ocorrer com todos os tipos de grupos de jovens intelectuais: drogas, bebedeiras, iniciação sexual, imaturidade e promiscuidade. Não são raros os momentos em que o leitor se pega perguntando: "e a literatura?". Um problema entre os aspirantes a escritores, essa vontade de viver uma vida literária, mais do que realmente escrever. A primeira parte do romance termina quando Madero, junto com Lima e Belano, fogem para o deserto de Sonora, no norte do México, para esconder uma prostituta de seu cafetão e para rastrear os últimos passos de uma obscura poeta que admiram.

A segunda parte, aquela que na primeira leitura me cansou, reúne depoimentos, escritos desde a década de 70 até a de 90, de dezenas de pessoas que conviveram com Ulises Lima e Arturo Belano. Se você pensa que ali teremos uma noção mais exata de quem são os dois poetas, está enganado. As declarações são contraditórias, confusas, às vezes desconexas, outras vezes escritas em derramados fluxos de consciência. Passeamos pelos mais diversos países, de França a Israel, todo tipo de personagem (de velhos poetas a prostitutas e um senhor internado em um sanatório) e situação. E é aqui que o talento de Roberto Bolaño cresce: nas imprecisões sobre a trama, o tal movimento literário e seus protagonistas. Como a própria história mexicana (e latino-americana), tudo é imprecisão. E como a edição brasileira do livro acertadamente aponta na orelha, "o verdadeiro detetive do romance é o leitor", que possui à disposição todos os depoimentos e pode, com eles, construir a sua própria visão acerca de Os detetives selvagens. Seriam Lima e Belano poetas de verdadeiro talento ou apenas traficantes desocupados que se utilizam da literatura para ganhar prestígio? Os real-visceralistas, afinal, tinham algum valor literário ou movimento era, como afirma alguém, "uma carta de amor, um pavonear demente de uma ave idiota ao lugar, algo bastante vulgar e sem importância", em suma, uma brincadeira de moleques tentando ser malditos? A maneira mais adequada (e divertida) de dissecar a obra é lê-la por inteiro de forma linear e depois atravessá-la outra vez, agora misturando as declarações e construindo um sentido próprio. Uma celebração da leitura da maneira como ela nunca deveria ter deixado de ser.

Na terceira e última parte, volta García Madero e seu diário registrando a estadia do grupo de poetas pelo deserto de Sonora. Uma espécie "road book", com gostinho de cinema. Nos trechos de diário fica ainda mais clara a vocação de Bolaño para o humor e o sarcasmo. E Madero, na nebulosidade de ser ou não personagem principal, ser ou não coadjuvante, sintetiza essa qualidade: essa multidão variada de figuras - tanto os escritores quanto os depoentes - se mistura em importância dentro do enredo, e essa polifonia, tudo isso só fortalece o resultado final.

Não deixa de ser curioso e irônico que, para trazer de volta os velhos hábitos de leitura, tenha sido necessário surgir um livro tão moderno e de significados tão abertos e difusos.

Para ir além





Jonas Lopes
São Paulo, 23/1/2007

 
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