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Sexta-feira, 9/2/2007
Leituras, leitores e livros – Parte I
Ana Elisa Ribeiro


As lentes da xará Ana Elisa Novais miram e flagram leitores

Ler está na moda. Para quem é vivo nesta nossa época, é difícil explicar as razões desse surto de preocupação com a formação do leitor, as práticas da leitura, a produção do bom texto. Talvez, mais adiante, historiadores da quarta ou quinta geração dos Annales possam esclarecer nossa atual perplexidade ao saber que os índices de analfabetismo continuam altos no mundo (com médias mais altas aqui e ali) e que o analfabetismo dito "funcional" reina absoluto (também com médias mais altas aqui e ali, principalmente aqui).

O que é ler? Também há uma trupe imensa de pesquisadores gastando os tubos para responder a esta questão. Uns sob um ângulo mais assim, outros, mais assado, mas todos querendo desvendar os mistérios que há sob o artifício interessantíssimo de ler coisas escritas.

Por falar em "mais assim ou mais assado", há algumas correntes de pensamento sobre ler. Desta vez, não apenas em relação às respostas para a pergunta "Como?", mas ao "O quê?". Há alguns anos, em Campinas, onde foi estabelecida uma das mais inteligentes e produtivas instituições de ensino superior públicas do Brasil, aconteceu um COLE (Congresso de Leitura) que levava o seguinte título: "O que lê a gente?". Nem me lembro mais em que versão do imenso evento, o tema proposto era discutir que materiais as pessoas têm lido, não se importando com juízos de valor, elitizações, prescrições, olhos tortos, narizes torcidos. A idéia era apenas saber o que as pessoas lêem, com que materiais elas têm contato, por que razões tomam um livro (ou jornal, revista, folheto, etc.) nas mãos e iniciam uma leitura.

Gosto muito dessa perspectiva de deixar que as pessoas leiam o que querem. É claro que não excluo a possibilidade de chegarem a ler os clássicos, por exemplo, mas talvez fosse mais produtivo deixar que tomassem gosto pelas coisas antes de serem apresentadas a um universo que pode soar árido para quem está acostumado apenas às placas de ônibus da cidade.

Ler é uma prática que se "contrai" com vagar. Não se passa a ler muito da noite para o dia. É preciso que as pessoas, individualmente e às vezes em grupo, consigam construir seus percursos de leitura. Suas trajetórias dizem muito sobre elas mesmas, as companhias, as possibilidades que tiveram, as iniciativas, os deveres cumpridos.

No início desta década, o INAF (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional) deu muitas pistas sobre as práticas da leitura no Brasil. Reparem que eu escrevi "práticas", no plural, porque é sabido por todos nós que não se lê apenas o que a escola pede, o que o professor manda, o que o padre dita, o que o Digestivo diz que é bom, o que sai na Veja, o que a Folha de S. Paulo diz que é bonito, o que os personagens das novelas da Globo estão lendo. Saber sobre os dados do INAF pode dar a ver uma espécie de "retrato" do que acontece nas mesas de cabeceira dos brasileiros. Aliás, outra pesquisa que fez sucesso em 2001 foi a "Retratos da leitura no Brasil", que tinha uma característica menos acadêmica e servia bastante mais ao mercado editorial.

Desde 2003, o país tem leis sobre promoção do livro e da leitura. Interessantíssimo, não? Pena que nem tudo acontece "de cima para baixo". É preciso colher os resultados pela raiz. Pegar as plantinhas pelo talo e regar por baixo. É de criança que se torce o pepino. Mas me lembro bem de que, quando era criança, eu gostava bastante de Atari e de pique-esconde na rua. Taí: com o castigo forçado das crianças de hoje, que não podem mais brincar na rua, talvez funcionasse melhor encher a casa de livros. Mas não é bem assim. Sabemos disso. Não há fórmulas. Não há macetes. Há possibilidades. Várias.

Um leitor do Digestivo que me contacta diz, num e-mail bastante descrente, que o professor, que deveria dar o exemplo, não é leitor, não lê com fluência, não tem esse hábito, não carrega livros pelos corredores da escola (exceto o didático, que é outra conversa polêmica). Concordo, Rodrigo. Morro de pena, mas concordo. Mas para não achar que isso é tudo, é preciso ler História do Brasil. Sugeri a ele uma passadinha por alguns livros do Nelson Werneck Sodré sobre a formação cultural do nosso país. E também disse a ele que pôr a culpa, com tanta veemência, no professor é exagero. Fiz a pergunta que não me cala nunca: e cadê os pais das crianças nesta história? Cadê?

Meu pai não é leitor de livros. Uma única prateleira com livros técnicos da década de 1970 deve resumir toda a biblioteca dele. A versão de O pequeno príncipe de 1953 eu confisquei e mantive na minha estante, para garantir a conservação da edição. Mas foi com meu pai que aprendi o protocolo de ler um jornal diário. Eu e meus três irmãos aprendemos a manipular jornal, ler, escolher, navegar, fechar e guardar, até recortar, quando é o caso, mas só depois que todos tiverem lido.

Minha mãe também não é leitora de livros maçudos. Diz ela que a memória não funciona mais. Talvez o círculo comece do outro lado: a memória não funciona porque ela parou de ler. Vai saber. Mas mesmo assim não foram poucas as vezes que vi, em sua mesa de cabeceira, uns livros de psicologia ou serviço social. Sei também que ela guarda livros num baú trancado a chave. Esse sempre foi meu motivo para implicar com ela. Livro, para mim, é bicho criado solto. Nem tanto que possam ser emprestados, mas ficarem trancados não justifica nada. Foi de minha mãe que ganhei meus primeiros exemplares da coleção Vaga-lume, intróito da minha carreira de leitora.

E assim vão acontecendo as leituras, as influências. Li livros porque gostei da capa, porque era o que estava disponível na hora, porque me disseram que era bom, porque ganhei e tinha que dar satisfação, porque comprei, porque fazia coleção, porque li resenha no jornal ou na revista, porque eram argumento de filme, porque disseram que era muito ruim, porque era proibido, porque era muito vendido, porque tinha ilustração, porque era minha obrigação escolar ou profissional. Li jornal, revista, folheto, cartaz, outdoor, manual de instrução, placa de trânsito, bula de remédio, rótulo de garrafa e lata, li panfleto, catálogo de telefones, cardápio, sacola de padaria, sites de cultura, revistas em quadrinhos, li missal, poema, livro didático e lápide. E a gente lê o quê? Lê muita coisa. Talvez não passe da leitura cotidiana, que não amplia os horizontes, mas lê. O que falta então? Ler melhor, ler com mais associações entre informações, ler com mais crítica (não a gratuita, claro), ler com responsabilidade, com astúcia, ler textos mais elaborados, mais complexos, maiores, mais profundos, mais estéticos, engajados, definitivos. Falta ler para escrever. Esta última é raríssima. Esta é uma das maiores dificuldades do estudante médio universitário. Ler para transformar e escrever. Aprender a ser autor.

Ana Elisa Ribeiro
Campos dos Goytacazes, 9/2/2007

 
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