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Quarta-feira, 23/5/2007
Literatura, cinema e adaptações
Pilar Fazito

Minha formação acadêmica está mais próxima da literatura do que do cinema. Sempre gostei de filmes, mas nunca fui cinéfila. Sempre gostei de histórias, de ler e escrever, mas também passo longe da bibliofilia.

Meu fascínio mesmo é por aquele instante em que a gente vê um mundo de idéias tomando forma gráfica através de um lápis, de uma caneta ou de qualquer coisa que risque. Se isso virar instrução para que essas idéias alcem novo vôo, desta vez do papel para as telas, melhor ainda. Mas eu gosto mesmo é do vôo, não do pássaro.

Esse vôo de idéias é tão instintivo e efêmero que nenhuma discussão teórica é capaz de aprisionar. Tentei fazer isso por dois anos, numa dissertação de mestrado, e acho que só consegui tirar uma lasquinha da ponta do iceberg. E tenho a impressão de que se continuasse com o trabalho por mais quinze anos, não teria mais do que outra lasquinha.

De lasquinha em lasquinha, entrei em acordo com meus botões, após uma assembléia muito acalorada. Chegamos à conclusão de que expressão verbal e visual são linguagens diferentes, mas irmãs. No campo da arte, por conseguinte, literatura, cinema, teatro, histórias em quadrinhos etc., fariam parte de uma grande família e se relacionariam como primos, uns de primeiro grau, outros de segundo e por aí vai.

E com essa "teoria" desajeitada, entrei em paz comigo mesma até que um Marçal atravessou meu caminho. Clareemos essa ladainha: e-mail daqui, e-mail dali, entrei num pingue-pongue argumentativo com o Marçal (o Aquino). Não há, no Brasil, melhor pessoa do que ele para discutir o que Literatura tem a ver com Cinema, afinal, o moço-escritor vez por outra invade a praia do cinema com as piores notícias recebidas de lindos lábios e ajuda a fedentina do ralo a espalhar prá todo lado.

Intuitivamente, eu defendia as raquetadas de Marçal e a honra da família verbo-visual: literatura tem a ver com cinema. "Não tem nada a ver", rebatia o Aquino.

O pingue-pongue virtual foi ficando cansativo e marcamos um duelo em João Pessoa, aproveitando a ocasião do encontro no III Cineport: Festival de Cinema em Língua Portuguesa.

O Marçal deu uma prévia de sua palestra aos roteiristas do laboratório de adaptação literária, do qual faço parte. Engatamos uma quinta e aproveitamos para continuar nosso acerto de contas.

Em termos de adaptação literária para o cinema, nunca soube muito bem sob que ponto de vista deveria formular minhas idéias. Escritores tendem a achar que o filme deve ser fiel ao texto, ainda mais se a adaptação é de uma obra sua. Esse apego é justificável, uma vez que há romances que demandam um, dois, cinco anos ou mais para serem geridos e paridos. Deve dar mesmo muita raiva ver um roteirista e um diretor transformar o "bebê" num Frankenstein.

Por outro lado, cineastas entendem melhor que a linguagem das telas é outra e que o compromisso do cinema é com os espectadores, não com os leitores. É necessário fazer um filme bom e, muitas vezes, o livro transposto tal e qual para as telas não implica necessariamente que esse objetivo será alcançado. Por melhor que o livro seja e por melhor que o roteirista seja.

As explicações são várias e vão desde as múltiplas interpretações pessoais evocadas pela narrativa textual até a dificuldade de traduzir em imagem idéias abstratas. Dizer que o personagem está angustiado é uma coisa, mostrar isso requer um esforço ainda maior. Ainda mais se o ator for uma espécie de cigano Igor, de uma extinta novela da Glória Perez.

No filme O perfume, por exemplo, os roteiristas preferiram uma adaptação "fiel" do livro de Süskind, se é que se pode dizer isso. A direção de arte está impecável, a escolha do elenco foi acertadíssima, mas nada disso salva a cena final do tom brega, em que o lencinho branco agitado ao vento faz suspirar e endoidecer a platéia que assistiria ao enforcamento do assassino. No livro, essa passagem não tem nada de brega e impressiona. No filme, ficou patético. Que triste.

Outro exemplo recente foi a adaptação de O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli. A adaptação não mudou quase nada da narrativa original. E nem precisava mesmo, a escrita de Mutarelli é bem visual e isso facilita a transposição para as telas. Entretanto, há um crescendum quanto à consciência do personagem principal. No início do texto, as frases são curtas e há pouca reflexão. Já no final, é como se o protagonista tivesse alcançado a compreensão de si mesmo, como um cara com dificuldades de se relacionar e que tem tudo pela metade ou de segunda mão, seja o pai, representado pelo olho e pela perna mecânica, ou a mulher, representada pela bunda. Estranhamente, ele não quer mais do que isso.

Gostei bastante do filme. A direção de arte também é muito boa, o elenco (com exceção da moça que faz a noiva) é excelente e tem boas revelações (como o próprio Mutarelli e o cara que fez o violinista), a trilha é ótima e a fotografia, exemplar (destaque para as cenas em que o protagonista passa diante da fachada do prédio). Mas então qual é o problema? O problema, nesse caso, é pessoal. Achei que o filme não conseguiu mostrar bem essa transformação do personagem que é tão latente do início ao fim do livro. Mas posso estar enganada. Há quem me garantiu perceber essa mudança sem ter lido o livro.

E aí é que mora a questão da adaptação. Toda adaptação será pior que o livro. Sempre haverá quem prefere o livro. Já que é assim, será que o roteirista ainda deve tentar manter a fidelidade ao texto original? Ou seria melhor ele apenas se inspirar na obra, basear-se ou adaptar livremente?

Os escritores defendem a fidelidade, os cineastas, não. Por isso fui perguntar ao Marçal, que embora se afirme como escritor, é polivalente e joga nas duas posições. Acabei encontrando alívio nesse nosso pingue-pongue, uma vez que também ando atuando nessas duas posições.

O Marçal defende que escritores apegados à própria obra não permitam que ela vá parar nas telas. Caso permitam, que entendam a necessidade de ela ser revirada ao avesso e desconstruída. Ou seja, o cinema não é lugar para escritor apaixonado pela própria criação.

Por essas e outras, o Gabriel García Márquez aumenta o valor dos direitos autorais sobre os Cem anos de solidão, de quando em vez. Essa coisa mal-resolvida da intervenção de terceiros na educação da criança... E ele está certo. Já o Marçal deverá ter o Invasor nas telas de Holywood, numa versão à la ficção científica. Aliens e essas coisas, talvez. O escritor não se importa com isso, já que entende o papel do roteirista. Ademais, pagando bem, que mal tem? Quantas versões de Romeu e Julieta não pararam nas telas do cinema? Uma adaptação (ruim ou boa) não impede o surgimento de outras.

Mas e no caso de criação do roteirista? Do roteiro original, sem ser uma adaptação? O processo criativo não tem nada de literário?

O Marçal, coça a cabeça, olha para o teto e se esquiva sem saber bem como responder, já que ele é escritor e não escreve roteiros diretamente. As idéias, para ele, sempre viram narrativas primeiro, só depois é que são mutiladas e costuradas para o formato cinematográfico. Ele encerrou sua palestra dizendo que o cinema não tem nada a ver com a literatura, mas depende dela de forma vital.

Depois de todo o quiprocó, saí desse duelo com a impressão de que literatura tem mais a ver com cinema quando não se trata de uma adaptação. Adaptações é que não têm nada a ver com literatura... Ou não.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 23/5/2007

 
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