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Quinta-feira, 14/6/2007
Minhas caixas de bombons
Adriana Carvalho

"Livros devem ser oferecidos como uma caixa de bombons."
Adélia Prado, em entrevista sobre como despertar o interesse de novos leitores.

Aqui estão três caixinhas. Coloquei em cada uma meus bombons literários preferidos. Embrulhei um a um, com muito esmero. No final, amarrei com laço de fita. São para você. Espero que goste.

A primeira caixinha, como pode ver, é a mais colorida. Você precisa ter 4 anos ou um pouquinho mais para poder sentir de verdade o gosto desses livrinhos. Como sentia quando comia tesouros inteiros de moedinhas de chocolate (da marca Pan, que já disseram ser o "melhor chocolate ruim que existe"), escondendo o papel atrás do sofá para a mamãe não ver. Ah, você já passou dessa idade? Não faz mal. Como diz o meu filho, o Francisco, "quando você nascer de novo e for pequenininho outra vez" terá nova oportunidade. Está nessa caixinha o primeiro livro de que eu me lembro, guardado na memória, mas que hoje não acho mais nem em livrarias nem em sebos. Chamava Gatinhozinho e me impressionava porque dizia que o gatinho da história tinha olhos da cor dos miosótis. E eu achava essa palavra tão linda e nem me importava com o que ela queria dizer. Coloquei aqui também os preferidos do Francisco, que nós dois lemos e relemos e relemos todas as noites. A série do castorzinho é a campeã. Levei horas numa livraria para escolher quando comprei. Tem ainda Boa noite, Marcos e Estela, Princesa do Céu, ambos da autora e ilustradora Marie-Louise Gay. Há muito livro infantil nas prateleiras, mas poucos são os que realmente têm boas ilustrações e conteúdo. Parece que editores e autores acreditam que a pouca idade desse público dispensa a inteligência, o bom gosto, a poesia e que qualquer coisa com bichinhos, cores e histórias repetitivas vai "distrair" as crianças.

Na segunda caixa, que tem gosto de Suflair, Tentação, Batom e Bis, reservei um espaço para alguns títulos que com certeza serão melhor apreciados pelas meninas, pré-adolescentes ou adolescentes e meias. Como A bolsa amarela, de Ligya Bojunga, sobre uma menina que tinha três vontades: de ser grande, de ser escritora e de ser menino. Eu também queria tudo isso (menos ser menino...). Adorava A fada que tinha idéias, de Fernanda Lopes de Almeida. Ah, veja aqui, temos um outro bombonzinho perdido no tempo como o Gatinhozinho: um pequeno livro chamado Mônica e o Fantasma. Eu adorava suspense e fantasmas!

Na outra parte dessa caixa, na ala "unissex" (que palavra velha!) tem mais guloseimas: uma tonelada de gibis da turma da Mônica e do Tio Patinhas. Um dia minha mãe teve um ataque de limpeza e jogou tudo fora. Quase tive um treco. Os gibis estão na memória do meu marido também, a recordação de ganhar uma preciosa moeda de cruzeiro para ir à banca. E a lembrança do pai dele, que sem nenhuma cerimônia que pegou o número 1 de uma de suas coleções para acender o fogo da churrasqueira! Pais, mães! Não desprezem os gibis! Eles têm sua função, sua arte, seu fio de encantamento que vai puxando os pequenos para o hábito da leitura. Dia desses, numa sala de espera, ofereci um gibi para um menino de dez anos, pensando que ele ia achar o máximo mas, para minha surpresa, ele recusou. O pai respondeu: "Ele não lê nada". Com dez anos, nem gibi?!? Deus nos salve a todos!

Gostava nessa época de Sessão da Tarde e pipoca dos manuais, como o do detetive-mirim, que me fez encher o chão da casa de praia de sucrilhos para ouvir o barulho dos passos caso algum ladrão tentasse invadi-la. Também enloqueci minha mãe espalhando talco no parapeito das janelas para colher impressões digitais.

Lembro que na agenda do colégio tinha umas frases sobre como se preparar para ler um livro. Como eu era CDF eu devo ter sido a única que lia a agenda. Mas nunca esqueci: dizia que o livro é como um amigo. E como todo amigo, você tem que ser apresentado a ele antes de estabelecer um contato maior. Por isso, antes de correr ao primeiro capítulo, orientava a demorar-se na capa, olhar a lombada, prestar atenção ao nome do autor e/ou do tradutor, olhar a contra-capa. Depois disso, ler com atenção o prefácio, as informações sobre o autor e só então partir para a leitura. Assim eu fiz com o primeiro livro "grande", ou seja, com mais páginas, que li na vida, aos sete ou oito anos: Robinson Crusoé, na versão de Monteiro Lobato. Incluo também nessa segunda caixinha pilhas de Agatha Christie e Sherlock Holmes para tardes trancadas no quarto, deliciosamente sozinha, se estiver frio, melhor ainda. Além de alguns volumes da coleção Vaga-lume, principalmente as Aventuras de Xisto. Talvez para essa faixa de idade Machado de Assis não pareça tão palatável, equivalha às verduras e legumes que a mãe insiste em pôr no prato. Mas acredito que, preparado o terreno, se o gosto da leitura já tiver sido despertado, é possível colocar um pedacinho de Memórias póstumas de Brás Cubas na língua do leitor. E torcer para que ele perceba que é delicioso e precioso como uma boa salada de endívias. E que salada e Machado de Assis são coisas muito saudáveis, que fazem bem para o corpo e a alma.

Na terceira caixinha, a mais sóbria das três, estão os bombons para adultos, meio amargos às vezes, mas com alta porcentagem de cacau. Estão sempre à minha cabeceira, se alguém pedir emprestado é capaz de eu amarrar uma corda bem comprida para ter certeza que eles vão voltar. Vários José Saramago, um sem número de Gabriel García Márquez e surpreendentes Julio Cortázar. Tem também textos que me fizeram chorar, não por que eram tristes, mas porque eram incrivelmente belos, como o poema "Aniversário", de Fernando Pessoa (Nos dias dos meus anos/ Eu era feliz e ninguém estava morto) ou uma das cartas de Fernando Sabino a Clarice Lispector, que consta de Cartas perto do coração, que estou lendo agora, por indicação dos meus amigos deste Digestivo. Não posso deixar de citar Alexandre Dumas, com o Grande dicionário de culinária. Estão nessa caixa ainda o encantamento que tive com Carl G. Jung em sua autobiografia Memórias, sonhos, reflexões, que me fez pular de surpresa na cadeira muitas vezes. E Walden, de Henri Thoreau, que escrevia olhando para o plácido lago que dá nome ao livro enquanto produzia turbulências nos leitores, como eu.

Bom, agora que você já abriu as três caixinhas, aproveite. Coma devagar. Devore tudo de uma vez. Para cada momento, em cada idade, haverá um tipo de apetite.

Adriana Carvalho
São Paulo, 14/6/2007

 
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