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Segunda-feira, 29/10/2007
Ferreira Gullar em dose única
Pilar Fazito



No mês passado, a Ana E. relatou no Digestivo como foi o "ofício" do autor Domingos Pellegrini em Belo Horizonte. Lembram-se?

Só para refrescar a memória: o Ofício da Palavra é uma iniciativa do Museu de Artes e Ofícios da capital mineira em que um autor conhecido é entrevistado por um mediador e pelo coordenador do projeto, o jornalista e também escritor José Eduardo Gonçalves.

Em rodinhas informais, alguns escritores mineiros adotaram a piadinha infame do colega Francisco de Morais Mendes quanto a chamar o evento de Santo Ofício da Palavra. Mas isso é só mesmo para o deleite da turma, porque o tom das palestras geralmente é informal e o autor "sabatinado" acaba se sentindo tão à vontade quanto o público.

A prova disso foi o último encontro, realizado na terça-feira, 23 de outubro, e cuja atração foi o escritor Ferreira Gullar. E põe atração nisso: o público formado pelos mais diversos tipos de pessoas encheu o saguão do museu. Eram trabalhadores, estudantes, educadores, gente de passagem que resolveu entrar para ver o que "tava pegando" etc., todos se esgueirando entre as colunas e sentando no chão, ou onde desse, para assistir a um pedacinho da palestra.

O poeta maranhense tem 77 anos, já escreveu diversos livros, traduziu outros tantos, ganhou inúmeros prêmios e foi indicado ao Nobel de Literatura em 2002. Além da poesia, Ferreira Gullar realizou trabalhos como crítico, teatrólogo e jornalista e participou da revista O Cruzeiro, d'O Pasquim e do jornal Opinião.

Filiado ao Partido Comunista, o autor foi preso durante a ditadura e, em seguida, exilou-se em Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires. Foi obrigado a viver por muito tempo na clandestinidade e só voltou ao Brasil no final da década de 70.

Uma das maiores características da obra de Ferreira Gullar é a preocupação com a realidade social aliada a uma constante busca pela renovação estética da linguagem. É justamente essa busca que faz com que ele se aproxime dos poetas concretos em 1954. Já o rompimento com o movimento concretista de São Paulo ocorreu três anos mais tarde. Na palestra, Gullar justifica essa divergência de ideais, dando a impressão de que o grupo paulista havia perdido o propósito inicial. O maior exemplo disso seria o desejo de publicarem um manifesto em favor de um tal "poema de base", sendo que ninguém havia conseguido ainda desenvolver um poema de base.

O autor falou ainda da diferença entre o artista e o não-artista. Para ele, nem todo mundo é artista ou poderia se tornar um porque não basta talento. Se bastasse, qualquer pessoa tocaria a Quinta Sinfonia de Beethoven ao piano. O exemplo do autor é extremo, mas também pode ser aplicado à escrita literária e a outras artes. Para Gullar, é preciso haver uma motivação interior inescapável, um sofrimento causado pela necessidade de expressar em linguagem o encantamento captado na realidade. A necessidade diferenciaria, por exemplo, o artista Picasso e o homem de talento Marcel Duchamps. Para o primeiro, a produção frenética retrata essa necessidade visceral; já o segundo teria pintado os próprios quadros entre um jogo de xadrez ou outro.

Ferreira Gullar é o tipo de poeta que busca a inovação da linguagem, mas reconhece que há um limite para o sentido. Para ele, "significado não existe no ar, não é mosca. Só existe nas linguagens". A total aniquilação sintática e a falta de intencionalidade do autor comprometeriam, assim, o conceito de "arte". Resumo da ópera: nem tudo pode ser chamado de arte.

Como se vê, o autor não tem receio de temas polêmicos. O que encanta o público que o ouve assim, tão de perto, é a forma humilde com que ele expõe seus argumentos consistentes e defende suas idéias.

Ao contrário do autor paranaense Domingos Pellegrini, que participou do Ofício da Palavra no mês passado, Ferreira Gullar demonstrou muita humildade ao falar dos clássicos. O primeiro espinafrou Machado de Assis, não apenas dizendo que não gostava dos textos, mas acabando com qualquer hipótese de reconhecimento do valor artístico desse cânone da literatura brasileira. Gullar, por sua vez, pediu licença para confessar que não gosta da obra do escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett, embora reconheça o seu valor. E o poeta justifica com um argumento ainda mais cativante: a obra de Beckett retrata as relações humanas sob um prisma altamente pessimista e "diz que a vida não tem sentido". Ferreira Gullar sabe disso, mas é sensível e escreve "para tentar dar um sentido à vida". Ele acredita que a arte e a literatura deveriam oferecer às pessoas a possibilidade de sonharem com algo melhor, imaginarem uma saída otimista. "Não sou o bom samaritano, não estou aqui para dizer verdades, mas com a minha própria fragilidade sei que as pessoas estão fartas". Sua intenção ao escrever é ajudar os leitores de alguma forma, seja com uma possível identificação ou chamando a atenção para um novo olhar. Em outros termos, para um mundo feio, cruel e asfixiante, as artes poderiam representar uma rajada de oxigênio e é isso que ele propõe.

Quando o coordenador do evento passou a palavra às manifestações e às perguntas do público, algo inusitado aconteceu (e cadê a Ana E. nessas horas para eu ter com quem comentar isso, meu Zeus!): não apenas uma, mas muitas pessoas faziam elogios e perguntas de forma empolgada ou visivelmente emocionadas. Uma mocinha quase chorou ao destacar a importância da obra do poeta para ela. Outra senhora se levantou e começou a cantar "O Trenzinho", composição de Villa-Lobos cuja letra foi escrita por Ferreira Gullar. A sorte é que a voz dela era boa, ou então teria recebido vaias. Em seguida, a dita senhora declamou o "Poema da Noite", escrito pelo autor em homenagem a Che Guevara.

Gullar parecia satisfeito. A platéia, idem. Em seguida, ele atendeu ao pedido do público e leu dois poemas; um deles em homenagem ao pai, que havia sido jogador de futebol.

Após os aplausos e o encerramento oficial, a mesa ficou rodeada de pessoas que buscavam autógrafos, dedicatórias, respostas a perguntas ou simplesmente ouvidos atentos como os delas.

Foi uma noite bonita.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 29/10/2007

 
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