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Quarta-feira, 17/10/2001
Transei com minha mãe, matei meu pai
Paulo Polzonoff Jr

Daniela Mountain

— texto escrito pelo Espírito Santo —


Calma, calma. O título acima é só uma brincadeira com o equívoco freudiano segundo o qual o sonho de todas as pessoas é matar seu pai e transar com sua mãe, postulado chamado de Complexo de Édipo e incompreendido pela maioria. Pensei nisso quando, às vésperas de me mudar, contei ao amigo um sonho que continha sexo e morte e ele disse que era um sonho freudiano. A princípio eu não entendi, porque sempre fiz questão de dissociar esta inverdade de Jocasta e Édipo com o real sentido que Freud dá à tragédia grega. Ocorreu-me de repente, contudo, que era justamente isso que tinha feito.

Fiz sexo com minha mãe. Irrita-me sobretudo este postulado. O Complexo de Édipo não se refere à passagem da tragédia grega em que Édipo transa com sua própria genitora, sem saber quem ela é. Na verdade — e sem trocadilho —, o buraco é mais embaixo. O Complexo de Édipo trata da proteção materna, dos malefícios desta proteção e de como dela se livrar é algo traumático para o ser humano. Édipo é um rei, superprotegido ou, como dizemos comumente, mimado. Toda mãe tende a mimar seu filho, como podem nos atestar as leitoras. E como podemos atestar todos, homens e mulheres, esta proteção em nada nos serve de fato, já que, no primeiro dia de aula, geralmente somos acometidos por tantas atrocidades que, num piscar de olhos, descobrimos que o mundo é algo cruel. De volta para casa, contudo, somos impelidos ao colo materno mais uma vez, ignorando que ainda há pouco levávamos cascudos do Joãozinho. Quebrar este círculo-vicioso é algo muito difícil. Tanto assim que muitos chegam à idade adulta sem conseguir atentar para as atrocidades do mundo. E não falo de terrorismo, homicídios, estas coisas; falo de atrocidades cotidianas: insultos, brigas no escritório, conversas aterradoras com a namorada sobre o relacionamento e frustrações simples e complexas. Muitas vezes esta “entrada” no mundo cruel é um verdadeiro choque na criança, mesmo que a “criança” tenha seus vinte, trinta ou cinqüenta anos. É como se o jogassem no abismo. Então ele não tem mais o colinho da mamãe? Então ele terá de encontrar seu próprio alimento, ao invés de mamar o seio? Então ele terá de ter seu próprio telhado para se proteger da chuva, ao invés de se proteger no abraço da mãe? Assim, de repente? E eis que temos o famoso Complexo de Édipo, sem sexo.

Quanto a matar o pai, a coisa é mais simples e direta. Freud jamais diria isso assim gratuitamente. Isso significa simplesmente sobrepujar as tradições, adicionando-se ao totem familiar como algo de relevância. Complicado? De jeito nenhum. Se seu pai foi um grande financista, para dar um exemplo profissional, é seu desejo natural superá-lo. Porque seu pai, nesta altura da vida, já deve ter cravado o nome dele em algum tipo de registro que o tem por grande. Já construiu, pois, seu monumento no mundo, que faz uma enorme sombra sobre o seu, ainda por ser construído. Desejo humano ordinário é construir um monumento maior, não para destruir o passado, mas para acrescentar-se a ele como algo relevante. Talvez por isso seja tão difícil para filhos de pais famosos, hoje em dia, agüentar a superexposição de seus genitores e sua possível (mas improvável) importância. Talvez por isso o nome “júnior”, dizem alguns, pesa tanto em algumas pessoas.

Como devem ter percebido os que até aqui chegaram, passei recentemente pelos dois postulados freudianos. Talvez eu seja, agora, um serzinho menos traumatizado. Mais encaminhado na vida. Talvez tudo o que escrevi acima não passe de balela evolucionista (tenho minhas dúvidas, já que tenho a tendência de ver Freud antes como um pensador do que como cientista). Fato é que neste momento me sinto capaz de andar sem pegar na mão protetora de minha mãe e também percebo que, de certo modo, estou a caminho de acrescentar algo à minha própria tradição.

Dada a proteção que me rodeava, no entanto, e dada a pressão que suportava, poderia dizer sem titular este texto como “Transei com meu Pai, matei minha mãe” sem problemas.

Isso tudo porque me mudei. Sim, saí da casa dos meus pais. Foi algo meio por vontade própria, meio por imposição. Saí da casa dos meus pais tarde, devem pensar alguns. Não pude deixar de pensar que, antigamente, as pessoas se largavam na vida bem mais cedo. Iam morar em pensões, em hotéis baratos, em repúblicas, etc. Fico imaginando a vida destas pessoas, que conheci apenas na literatura. Como seria morar numa pensão, ao lado de um escritor, batendo noite adentro na máquina de escrever? Naquele calor carioca ou mesmo no frio intenso do inverno curitibano — como seria agüentar temperaturas extremas em ambientes muitas vezes hostis? Bem, vou ficar só imaginando isso, porque me mudo razoavelmente, acho, para um quarto-e-sala bastante silencioso, até agora.

Disse no parágrafo acima que mudei meio por imposição. Pois é. Antes de começar a escrever este texto, tinha em mente um que começava com “Jesus me pôs para fora de casa”. Logo eu, provavelmente o mais crente lá de casa, fui posto para fora (isso é exagero, não liguem) pelo fundamentalismo. O que, de certo modo, é bom, porque me obrigou a pensar nestas religiões de ocasião que pipocam nas esquinas das cidades e até nos rincões longínquos, na beirada das estradas, sob o lusco-fusco dos faróis dos caminhões. Afinal, a máquina da fé não pode parar.

Estranho este fenômeno. Pesquisando um viés inexplorado para fazer uma matéria par ao jornal em que trabalho, eu e meu editor estivemos numa destas igrejas dia desses. Igreja Universal do Reino de Deus — a mais famosa. Cerca de trinta pessoas estavam dispostas num galpão que comportava facilmente quinhentas pessoas, no que fora um dia um supermercado. A ironia não me escapou. Aquelas pessoas todas ouviam um pastor negro falar sem microfone. Todas tinham Bíblias na mão, à exceção de mim e de meu editor, os penetras naquela festa pseudo-sagrada. Não era um culto, mas um grupo de estudos bíblicos. Sentamos e ficamos ali escutando aquela voz que era agradável nos falar de uma dessas histórias bíblicas que bem poderiam estar nas Mil e Uma Noites. Uma judia não podia engravidar e a lei judaica permitia que seu marido se casasse com uma outra com quem ele pudesse montar uma família. O moçoilo (o nome esqueci), que não era burro nem nada, logo arranjou uma que parisse sua dinastia. Aquela que permaneceu como esposa dele, mas num plano inferior, rezou e rezou e rezou para que a ela fosse concedida a benção de engravidar. Só que Deus não atendia a seus pedidos porque eles eram desprovidos de fé. Até que um dia ela parou de se lamuriar e de rezar a mesma reza de sempre e rezou uma oração, digamos, sóbria, e a ela também foi dada a benção da fertilidade. E viveram felizes para sempre — dá vontade de acrescentar.

Salvo algum engano, a história era essa. A partir daí, o pastor começou a falar que aquelas pessoas que ali estavam não poderiam ficar só se lamuriando. Tinham de fazer. Não podiam mais reclamar que as coisas não aconteciam com elas. Tinham de correr atrás. É mais ou menos o que o Lair Ribeiro e seus asseclas pregam em cursos de “neurolingüística” que custam uma fortuna.

Qualquer um com um mínimo de inteligência louvaria (sem trocadilho) a capacidade daquele pastor se expressar. Na periferia de Curitiba, com um sotaque carioca, negro numa cidade bastante racista, ele bem poderia ser desprezado. Com seu sorriso largo, entretanto, cativava a platéia (eu e meu editor inclusive). E a ela não fazia nenhum mal, se não considerarmos mal enganá-las de que têm uma oportunidade de se salvarem na vida a partir de orações e contribuições à igreja.

Dia desses vi um documentário interessante, que dava uma trégua à campanha que tenta difamar as igrejas neopentencostais pelo Brasil afora. A questão proposta pelo documentário era justamente esta: a Igreja, na periferia das grandes cidades, especialmente, estava substituindo um papel que era do Estado. Mais ou menos como o tráfico de drogas faz. Claro que, a esta altura, você deve ter pensando que drogas e religião são a mesma coisa, graças à célebre frase do nosso amigo Marx, mas fujo, aqui, deste tipo de bazófia. Penso que tinha razão, o documentário, a não ser pelo fato de esquecerem-se (ou não poderem, sei lá) abordar o fato da ética pregada nestas igrejas, que é essencialmente católica, apesar do discurso ser protestante. Assim, perpetua-se a idéia do sucesso, da bem-aventurança como um pecado; glorifica-se a miséria e a dor como meios de se alcançar a eternidade.

Minha experiência com estas religiões, já as esbocei num texto anterior. Criança, freqüentei, ou tive-de, uma destas igrejas. Lembro-me de algumas coisas monstruosas, como a vez em que um pastor levou um rabino para fazerem um culto juntos e o rabino falava de Jesus como o salvador de todos os homens, ou seja, uma contradição que só fui entender alguns anos mais tarde. Ou então da vez em que, às vésperas das eleições para presidente, o pastor fez uma pregação bastante política, dizendo que, se o Lula ganhasse as eleições, teríamos de dividir até os sapatos da família. Para um público formado essencialmente por gente de classe-média, isso parecia assombroso. O que viria a seguir só era patético: o pastor se ajoelhou em frente à bandeira do Brasil e rezou para que Lula não se elegesse, aos berros, claro, e depois rezou o Hino Nacional.

O impacto desta experiência só foi, à época, frustrante. Ia à igreja para pedir que uma menina se apaixonasse por mim — um motivo digno, penso hoje. Como não obtive a graça, a religião foi perdendo o sentido. Ao mesmo tempo eu crescia e Jesus passou a ser um nome não lá muito bem-vindo nas conversas de adolescente. Quando fui me importar com igreja novamente, o nome dele adquirira outros significados, ou até mesmo significado algum, já que eu andei de namoro com o judaísmo.

Este ano, porém, as coisas fugiram do meu controle, por causa de Jesus. Tanto que este texto que vocês talvez leiam, apesar do cansaço, era para ter no título o nome de Cristo, não sei bem como, ainda. No começo do ano vivi uma estranha história de amor que nasceu fulminante e morreu ternamente nos braços dele, como uma Pietà às avessas. Não convém expor a moça, contudo, por sei que os amigos dela me lêem. Agora, esta mudança forçada, ou melhor, motivada, por Jesus. Logo eu, o mais crente entre os crentes lá de casa, convidado a dela me retirar em nome dele, como um incrédulo que não sou.

Viu como é — a gente começa o texto com uma blasfêmia e termina assim, pensando, querendo colocar reticências na frase final, como se estas reticências redimissem nossa incapacidade de transcrever de modo lúcido a não-dor que se vive agora; como se três pontinhos enfileirados traduzissem para o leitor a certeza da crença, a certeza do caminho, a tristeza de se olhar para o lado e se perceber sozinho e, por fim, a esperança...


Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 17/10/2001

 
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