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Quarta-feira, 19/3/2008
Crônicas do anonimato
Luiz Rebinski Junior

"Se tiver de morrer, é melhor morrer no Times". A frase do jornalista A. M. Rosenthal que Matinas Suzuki Jr. tomou como epígrafe para seu texto que fecha O livro das vidas ― Obituários do New York Times, é representativa da importância que os necrológios têm na imprensa de língua inglesa.

O livro é o mais novo lançamento da coleção Jornalismo Literário, da editora Companhia das Letras, que, entre outros, já publicou clássicos do gênero como Fama e anonimato (Gay Talese), Hiroshima (John Hersey) e O Super-Homem vai ao supermercado (Norman Mailer). A coletânea traz mais de cinqüenta obituários publicados no mais importante e influente diário do mundo, todos escritos ao longo da década de 1990.

Tradicionais nos Estados Unidos, como escreve Suzuki Jr. no esclarecedor posfácio que acompanha a edição (o texto é tão bom e bem escrito quanto qualquer obituário do livro), o obituário literário passou por diversas transformações ao longo das últimas quatro décadas, quando deixou o formato de "tributo" ― geralmente escrito por familiares ou pessoas próximas do morto ―, para finalmente adquirir caráter jornalístico e, na seqüência, requintes de literatura. Entre as mudanças significativas que as seções de obituários sofreram, talvez a mais emblemática seja a que mudou o foco dos textos, que passaram a contemplar não apenas personalidades famosas ou pseudo-estrelas, trazendo para as páginas dos jornais gente "comum" ou pouco conhecida. E é esse tipo de pessoa que figura nas páginas de O livro das vidas; anônimos que fizeram algo relevante e que merecem ser conhecidos.

Assim ficamos conhecendo pessoas talentosas, como Russell Colley, estilista frustrado que encontrou abrigo na engenharia mecânica e ficou conhecido como o "Calvin Klein das roupas espaciais"; e Edward Lowe, que em 1947 inventou a areia higiênica para gatos e fez com que os "cães passassem a ter um rival nos lares americanos". Quando comparado com os perfis de gente famosa, em que a probabilidade de se conseguir informações exclusivas é bem menor, os obituários de anônimos são bem mais interessantes, já que obrigam a uma maior e mais minuciosa pesquisa acerca do personagem. Bom exemplo disso é o obituário de Jerry Siegel, o criador do Super-Homem que passou a maior parte da vida na miséria após ter vendido a sua melhor criação ― que se tornaria um produto cultural bilionário ― por míseros 130 dólares.

O texto de tiro curto dos obituários também dá ao jornalista maior possibilidade de extrair o inesperado, pois trafega em um território aparentemente inexplorado, o que lhe amplia as possibilidades de investigação. Mas um dos aspectos mais interessantes de O livro das vidas é que os textos não tentam resumir a vida de seus personagens, nem traçar uma ordem cronológica dos acontecimentos, mas sim mostrar o que de mais interessante ― não necessariamente o fato mais bondoso ou louvável ― o obituariado fez em vida ― como no hilário "Entrando na história pelo lado errado", em que Robert McG. Thomas Jr. conta como o aviador Douglas Corrigan fez um malfadado vôo do Brooklyn a Los Angeles que, inexplicavelmente, terminou em Dublin, depois de 28 horas de vôo.

Para o jornalista e editor do site TextoVivo, Sergio Vilas Boas, os obituários da coletânea demonstram que é possível ser profundo no jornalismo diário. "O que gosto em O livro das vidas é a capacidade de síntese dos textos, sem perda da expressão clara, robusta e inspiradora. Isso mostra, entre outras coisas, que jornalismo em profundidade não necessariamente tem a ver com 'texto longo'. Pode-se ser profundo em textos de cinco ou oito mil caracteres, por exemplo".

Jornalismo literário brasileiro
O obituário é também um ótimo desafio ao jornalista/escritor, pois dá a ele a chance de transformar algo aparentemente insignificante em uma história interessante, caso tenha talento para tal, é claro. É aí que o jornalismo cruza com a literatura. Com boa dose de elegância, muita apuração e algum estilo, pode-se transformar uma notícia corriqueira em um grande texto ― haja vista a maneira como Capote deu a partida para seu clássico A sangue frio.

Posto disputado dentro dos jornais americanos, a função de obituarista relegou a alguns profissionais fama e prestígio. Entre os autores que figuram na coletânea, certamente Robert McG. Thomas Jr. é o que mais se destaca. Thomas Jr. é responsável por alguns dos mais interessantes obituários do volume, que se destacam pelo texto sublime, leve e, muitas vezes, sarcástico. Não é preciso muito tempo para perceber como o jornalista consegue conciliar com maestria a concisão exigida pelo jornalismo diário e a elegância de um texto mais apurado e com tratamento literário. Levam sua assinatura, entre outros, "O rei dos danos", sobre um advogado com um poder de oratória espetacular, e a "Musa junkie", que revela a vida errante de Herbert Huncke, o homem que cunhou a expressão beatnik, anos depois utilizada para descrever a geração de escritores encabeçada por Jack Kerouac.

Por se tratar de um texto (também) jornalístico, os obituários de O livro das vidas iniciam sempre com uma espécie de lead padrão, em que a informação da morte do personagem (com hora e data) é precedida por um pequeno resumo de suas realizações em vida. Esse epíteto ficou conhecido na redação do Times como "a clausula quem", e foi aperfeiçoado por Robert McG. Thomas Jr., que escreveu 657 obituários para o jornal ― devido ao alto grau de excelência de seus textos, os obituários do jornalista ficaram conhecidos como os "McGs".

No Brasil os obituários nunca emplacaram. Os perfis de gente morta, em geral, espalham-se por diferentes editorias nos jornais brasileiros, sem um espaço específico, como na imprensa americana e inglesa. Recentemente a Folha de São Paulo criou uma seção para obituários nas páginas do caderno "Cotidiano". Ainda que bem menor do que os textos do New York Times, a coluna tem sido vista com bons olhos por gente da área.

"A seção é um pequeno texto, uma pequena história, muito bem escolhida e muito bem escrita por um jovem jornalista chamado Willian Vieira que vem na tradição do melhor obituário moderno da imprensa anglo-saxã, que é, eu acho, o grande obituário que a imprensa tem hoje", disse Suzuki Jr. em entrevista ao Observatório da Imprensa.

Vilas Boas também acha que a iniciativa da Folha pode sugerir uma mudança de postura do jornalismo brasileiro com relação às "narrativas da vida real", mas realça que ainda engatinhamos na seara do jornalismo literário.

"A recém-criada seção de obituários sinaliza uma sutil (muito tênue ainda, mas importante) mudança no fazer jornalístico da Folha, principalmente. Independentemente disso, é fato que não temos tradição de fazer jornalismo narrativo em profundidade. Nossa tradição é em fazer jornalismo superficial, tosco, insosso. Tivemos, em nossa história, bons repórteres, evidentemente. Gente batalhadora, que sujou os sapatos, pesquisou, investigou, conversou, imergiu no mundo. Apuração sólida, aliás, é o mais importante do jornalismo literário. Mas nosso país é parco em autores que encarnam (na mesma pessoa) o apurador insaciável e o escritor brilhante. Mas agora a tendência é isso mudar. O jornalismo convencional está em franca desconstrução".

Boa prova disso é o fato de que, nos últimos anos, o mercado editorial brasileiro tem tentado recuperar o tempo perdido. A chegada às bancas de revistas como Piauí e Brasileiros e a publicação de clássicos do jornalismo literário norte-americano até então inéditos por aqui tem demonstrado que há interesse do leitor brasileiro por um outro tipo de texto jornalístico, bem mais apurado e criativo. Diante de tal cenário, O livro das vidas certamente é mais uma fagulha a reacender o interesse de profissionais e leitores por um tipo de jornalismo que anda fazendo falta por aqui.

Para ir além





Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 19/3/2008

 
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