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Segunda-feira, 22/9/2008
Flores Azuis, de Carola Saavedra
Mariana Mendes

Logo no início do livro Flores Azuis (Companhia das Letras, 2008, 168 págs.), de Carola Saavedra, uma pergunta me instigou, acompanhando-me até a última linha: é possível afirmar de um livro que ele se dirige e agrada mais ao público feminino do que ao masculino? Não me refiro aqui a uma literatura feminista, engajada e que encampe uma luta por igualdade, e sim a algo muito mais sutil. Uma escrita que, ao retratar e privilegiar o que se convencionou chamar de universo feminino, dialogue diretamente com este público a ponto de excluir outros. E se, por acaso, a resposta for positiva, isso diminuiria de algum modo a qualidade dessa escrita? A pergunta pode parecer complexa e talvez seja possível imaginar, a partir dessa questão, argumentos de autoridade ou teses acadêmicas, mas minha intenção aqui é apenas pensar, levantar e discutir o assunto, tendo como principal guia este novo romance de Saavedra.

Autora jovem ― nasceu no Chile, em 1973, mas reside no Brasil desde os três anos ―, Carola foi uma das finalistas do concurso Contos do Rio em 2005, promovido pelo jornal O Globo. Seu texto impressionou um dos jurados, o renomado e veterano escritor Sergio Sant'Anna. Através desse apadrinhamento, Carola lançou, em 2007, seu primeiro romance, Toda terça, por uma importante editora, a Companhia das Letras, que agora também publica Flores Azuis. Neste que é seu terceiro livro ― o primeiro, Do lado de fora, é uma antologia de contos publicada pela editora carioca 7 Letras ― a escritora se utiliza de um recurso já explorado em Toda terça: a alternância do ponto de vista capítulo a capítulo; além de imprimir extrema agilidade à narrativa com um estilo peculiar.

O livro se inicia com uma carta de amor escrita por um remetente anônimo que assina apenas como "A.", mas que se caracteriza como uma mulher que se separou e digere esse momento através da escrita. O livro é composto por nove dessas cartas, intercaladas com nove capítulos em que elas são lidas por Marcos, um arquiteto recém-separado. Inicialmente, as cartas foram endereçadas corretamente: o nome da rua, número do prédio e do apartamento, tudo confere, mas o destinatário está incorreto. Marcos mora nesse apartamento há apenas um mês e observa que esta primeira carta é dirigida a outro que não ele, mas sua curiosidade o leva a lê-la e, depois desse primeiro contato com essa remetente misteriosa, não consegue mais se distanciar. As cartas são escritas e deixadas em sua caixa de correio diariamente, do dia dezenove de janeiro ao dia 27 do mesmo mês. Marcos se envolve com essas cartas, com o conteúdo da escrita; elas causam um impacto devastador em sua vida, transformam-se em uma obsessão e fazem com que ele enxergue claramente as diferenças entre ele e a ex-mulher e suas idiossincrasias. As cartas o levam também a dispensar Fabiane, candidata à nova namorada e, finalmente, o fazem perceber aspectos importantes da sua personalidade. Através da leitura dessas cartas, Marcos descortina o que gosta e quer de uma mulher.

E onde entra a questão levantada no primeiro parágrafo? Um ponto de vista feminino se alterna com um masculino a cada capítulo, então por que mencionar uma preponderância feminina? A resposta é simples: esse predomínio é intrínseco ao texto, existe um apelo e uma construção temática voltados para o que se convencionou chamar "o típico universo feminino". Desde a primeira carta, o leitor fica exposto a uma enxurrada de idéias comumente associadas a um modo de ser exclusivo das mulheres, como, por exemplo, a idéia de nós mulheres lançarmos mão de um certo exagero ao nos comunicarmos, exagero com o qual os homens não se sentem à vontade: "Talvez você não queira toda essa revelação, toda essa intimidade. Esse excesso de palavras". A verborragia é tipicamente feminina? E uma insegurança que nos leva, diante do outro, a fazer perguntas sem esperar por uma resposta? Perguntar por perguntar é um comportamento tipicamente feminino?

Está claro que são idéias usadas para construir a personagem feminina, pertencem ao registro da ficção e inicialmente não podem ser tomadas como generalidades ditas sobre a mulher e o seu universo. Porém, mesmo sob o domínio do narrador masculino, é possível entrever idéias muito parecidas. Ao receber a primeira carta, Marcos tece conjecturas sobre quem a escreveu: "Quem se daria o trabalho de escrever uma carta nos dias de hoje? Provavelmente uma mulher", ou adiante: "Mas as mulheres só compreendem o que interessa a elas (...)", "As mulheres belas costumam ser as mais complicadas (...)". Ainda que exista uma alternância entre os pontos de vista, eles não diferem entre si quando se trata de compor uma imagem sobre o universo feminino. Nos dois casos, se apóiam em estereótipos.

E ainda que as idéias sejam proferidas ora por "A.", ora por Marcos, elas perpassam a ficção de um modo único e constante. O universo feminino, ou o que se imagina dele caso exista tal qual um consenso, acaba, talvez por um mero acaso, sendo um dos eixos temáticos principais na falta de um sentido mais forte na composição da matéria de Flores Azuis. E por esse viés há uma dissonância entre o tema e a forma. O romance possui um final aberto, o leitor termina sem saber exatamente para quem "A." escreve. É uma estrutura que demonstra o pleno domínio da autora diante da forma, elaborada por um estilo forte e bem trabalhado, mas talvez Carola tenha se preocupado demasiadamente com a estrutura a ponto de negligenciar sua matéria. A não ser que sua intenção tenha sido reproduzir estereótipos à La Bridget Jones.

Para ir além





Mariana Mendes
São Paulo, 22/9/2008

 
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