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Segunda-feira, 17/11/2008
Os pontos de um crochê
Pilar Fazito

"Passarinho na gaiola,
Fez um buraquinho...
Voou, voou, voou, voou
E a menina que gostava
Tanto do bichinho
Chorou, chorou, chorou, chorou...
"

Há coisas que são universais a todos os povos, como as danças de roda, a música, os pães, a figura do curandeiro-médico-xamã e do palhaço, as tramas, os bordados e os fios. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer tempo, as pessoas se divertem, comem, adoecem e tramam seus fios para se vestirem ou para transformar palha em algo útil.

Os fios sempre estiveram em destaque na história da humanidade. Penélope bordava de dia e desmanchava o bordado à noite enquanto esperava a volta de Odisseu. As Moiras controlavam o fio da vida dos mortais, determinando a hora em que cada um teria o seu destino cortado e que deveria, então, levar as duas moedas para o barqueiro que fazia a travessia deste mundo para o outro. Teseu conseguiu sair do labirinto do Minotauro graças à linha que desenrolava atrás de si e que marcava os lugares por onde havia passado.

E assim a história se entrelaça, formando uma trama de conhecimentos adquiridos ao longo de gerações. Da tessitura grega à velha a fiar, a costura, o bordado, a tecelagem, o tricô, o crochê, a renda, o patchwork, o fuxico etc. passaram de avós, mães e tias e para filhas, netas e sobrinhas. Um exercício silencioso de paciência, atenção e cumplicidade.

Tradicionalmente feminina, a atividade com as linhas e agulhas requer mais do que mãos habilidosas e finas, requer devoção. Na costura, cada ponto puxa a linha do pensamento e faz a imaginação e as emoções fluírem para o tecido. O bordado as imprime sobre o étamine. O tricô e o crochê fazem com que elas dêem voltas e voltas sobre si mesmas, criando um mundo imprevisto de nós e laços.

Lidar com linhas é entabular uma assembléia com os próprios botões. Uma troca de idéias com o tecido, com as agulhas, os novelos e as meadas. É alinhavar o pensamento, remoer e organizar as impressões, pôr a casa em ordem para então ver o que se há de fazer. Assim como a escrita, é uma faxina interna. Mas é uma faxina que não precisa ser feita de forma tão solitária.

O filme Colcha de retalhos, com Wynona Ryder, assim como as diversas associações de rendeiras, costureiras, bordadeiras e tecelãs mostra como a atividade realizada em grupo torna-se uma troca de experiências femininas. Concentradas no próprio trabalho, cada mulher desfia suas angústias, suas dores e alegrias e interage, ensinando e aprendendo umas com as outras a respeito de pontos, alinhavos e arremates e sobre outros temas como o amor, a profissão, a família, os desejos, as frustações, os sabores e dissabores de uma vida comum. E quando não há essa troca proveitosa, futricam, ou melhor, fuxicam, transformando a vida alheia em tapetes, colchas e bolsas.

Aprendi a bordar por acaso e de forma autodidata. As linhas sempre me encantaram, mas minha avó não me esperou crescer para me ensinar sua arte. E minha mãe não as quis aprender, talvez por inaptidão natural ou por ranço feminista, próprio de sua geração. O fato é que, neste quesito, fiquei órfã muito cedo.

Eu admirava muito o manejo das agulhas, mas só fui aprender mesmo muito tarde, já saindo da faculdade. Antes disso, tive uma experiência mínima com a tecelagem de tapetes arraiolos, durante umas férias escolares, quando uma tia-torta me deu uma trama, uma agulha e um novelo de lã. E outra tão pequena quanto a anterior, quando outra tia-torta me ensinou o ponto básico do tricô. Cheguei a comprar agulhas e novelos de lã, mas meu cachecol azul nunca conseguiu cobrir mais do que a palma da minha mão.

Depois que me formei, arrumei um trabalho como professora de francês para alunos do ensino médio. Logo no carnaval, eu tive dengue e fiquei todo o feriado acamada e com uma falta de energia absurda, que me impedia mesmo de descer as escadas de casa. Uma amiga soube disso e me preparou uma caixinha com diversas atividades lúdicas para enfermos, além de uma porção generosa de brigadeiros. Dentre as atividades, havia uma toalhinha com o início de um bordado vagonite e uma agulha espetada num recadinho: "finish it". Era a única instrução. Como a dengue me obrigava a ficar parada, resolvi tentar entender como funcionava aquele "trem" e, muito desajeitadamente, consegui terminar o bordado. Gostei da coisa. Já recuperada da doença, passei a comprar revistas sobre o tema, agulhas e linhas. Lancei-me no desafio de aprender sozinha o ponto cruz. Aprendi. Cheguei a bordar algumas toalhas, muitas letras e alguns desenhos. Depois, por motivos pessoais e extra-terrestres, suspendi a produção.

Passaram-se os anos. Desses que a gente não vê e só percebe quando eles invadem nosso corpo e nossa pele, acentuando as rugas e linhas dos rostos e os sulcos da palma da mão.

Atualmente, seleciono, jogo fora parte de três décadas de existência e encaixoto outro tanto, lançando-me numa guinada saturnina de vida. Uma mudança de ciclo, de decênio, de casa, de cidade, de estado civil, de profissão, de corte de cabelo, de estilo de vida e de tudo mais que vier.

Eu tenho o costume de fazer faxinas anuais e jogar fora o que não uso, o que não presta e o que posso conseguir novamente; por isso mesmo, assustei-me com a quantidade de lixo que colecionei ao longo dos anos. Quanto mais coisas iam para as caixas, mais coisas saltavam dos armários. Como as caixas são poucas, resolvi avaliar a papelada que vinha passando pela trama da peneira nas últimas faxinas anuais e me vi às voltas com contas, comprovantes, contratos e rescisões vencidas havia mais de oito anos e cartas e bilhetes de pessoas que foram importantes, mas que viraram passado ou desprezo, ou que caíram no abismo do esquecimento. Lixo. Todo o lixo que pesa na bagagem e enche a casa e o presente de traças, ácaros, poeira, mofo e lembranças ruins.

Confesso que me senti mais leve a cada papel rasgado, como se eu finalmente me desfizesse não apenas de papéis, mas de cobranças internas e externas que nunca me fizeram bem.

A faxina me obrigou a organizar meu material de bordado, que estava todo espalhado, e as linhas que estavam emaranhadas numa confusão de nós e cores. Em meio a tudo, encontrei um novelinho verde, antigo, de uma linha grossa que eu usava muito pouco. No meio dele havia algo que, até então, eu nunca havia tido a curiosidade de verificar o que era.

Então me lembrei que aquele novelo havia pertencido a minha avó materna. Não lembro como foi parar ali. Não sei se me foi dado pela minha mãe ou minha irmã, ou se eu o afanei... Sei que ele veio para a minha caixa de bordados junto com uma caixinha azul, contendo uma agulha de crochê, que também havia sido dela. Desenrolei a linha e descobri uma peça de crochê que minha avó havia começado a fazer. Imediatamente me lembrei do "finish it".

Eu nunca havia feito crochê na minha vida. Não sabia como manusear a agulha, ou como fazer os pontos. Mesmo assim, resolvi pegar a agulha enferrujada da minha avó e tentar continuar o que ela havia começado. A seqüência dos pontos me era indicada de forma inexplicável. Era como se ela apontasse por onde e de que forma eu devia passar a agulha e puxar a linha. Quando dei por mim, estávamos fazendo crochê. Estávamos. Eu e ela. Mesmo após 24 anos de sua morte, eu podia aprender algo novo com a minha avó e sentir sua presença.

Continuar seu crochê é juntar meus pensamentos aos dela, tentar imaginar o que ela faria na carreira de pontos seguinte, é dialogar com seus pontos, querer saber o que a fez cerzir de forma tão unida e tensa... Enfim, é uma segunda chance de tentar conhecer minha avó por ela própria. E, no final de tudo, conhecer a mim mesma, o que temos em comum. Convivi pouco com minha avó, mas intensamente. A ponto de ainda tê-la como uma referência para todas as minhas decisões. Só o que pude registrar, durante a infância, foram canções de roda e de ninar; a gentileza, a calma e a simpatia cotidiana; a admiração pelas plantas e animais; e o espírito científico indefectível de toda avó, o que me fez acreditar que toda a indústria farmacêutica não é páreo para a arnica, a água-com-açúcar e as formigas que fazem bem para a vista.

Eu queria ter tido oportunidade de conhecê-la melhor e o destino está se encarregando disso. Não tenho do quê reclamar.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 17/11/2008

 
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