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Sexta-feira, 12/12/2008
Presente de grego?
Ana Elisa Ribeiro

Sempre achei interessante a expressão "presente de grego". Quando meu pai a usava, eu ficava intrigada, pensando no que seria aquilo, embora pudesse inferir que não era boa coisa. O contexto em que a expressão aparecia era sempre negativo, presente que ninguém queria ganhar, que dava trabalho, que aporrinhava. Mais adiante, lendo sobre a guerra de Tróia ou vendo filme, não sei, é que fui entender aquela história do cavalo de madeira dado de presente pelos gregos aos troianos. Lá dentro do pangaré, muitos soldados loucos para ganhar a guerra. Boa sacada.

Sem dúvida, ganhar aparelho de telefone celular é presente de grego. Fazer o quê com aquilo? No mínimo vai-se ter de comprar créditos para fazer a geringonça funcionar de vez em quando. A mesma coisa para ganhar carro, um frango cru ou qualquer coisa que obrigue o novo felizardo a trabalhar e a gastar dinheiro. Nunca dei um celular, a não ser para quem já o tinha, às vezes um caco, precisando de renovação. Nunca dei carro (e nem darei) porque nunca tive essa grana sobrando e, se um dia tiver, manterei outro tipo de critério. Não dei frango cru a ninguém porque isso nem passa pela minha cabeça.

Outro dia, meu filho se recusou a dar um livro de presente. Disse que se desse um volume ao amiguinho de escola, o menino nunca mais seria seu amigo. Ri muito no momento da contenda, mas lastimei o resto do dia que, aos 4 anos, meu pimpolho já saiba tanto sobre a vida. O curioso é que ele gosta de livros, os tem aos montes na estante colorida que tem no quarto, escolhe dois ou três para que eu leia toda noite, tem suas estórias preferidas e pede livros de vez em quando. A despeito disso, sabe que não é coisa que se dê a torto e a direito. É preciso saber a quem dar livros. É preciso conhecer as pessoas, saber seus gostos ou, ao menos, saber como reagem ao objeto.

Já escrevi muitas crônicas sobre livros, sobre os que dei, os que ganhei, os que curti, mas nunca entrei na seara do livro infantil. Resenhei, recentemente, com muito gosto, um CD da Anna Ly, Desenrolando a língua, que deixou a mim e ao Dudu de queixo caído. Presentaço de Natal para quem gosta de sobrinho, afilhado e filho. Presente para os filhos e para os pais, que não se empobrecem e emburrecem com CDs "educativos" de apresentadoras de programas televisivos e que podem, ufa!, escutar boa música.

E aproveitando o ensejo, resolvi mostrar o que meu garotinho de 4 anos tem considerado os top hits da biblioteca que lhe completa o quarto. Começo pelo livro , de María Paulo Bolaños, traduzido pelo reconhecido e divertido Leo Cunha, também premiado autor de livros infantis (assim como a mãe dele). tem projeto gráfico da autora, como, em geral, ocorre a esse segmento de livros, e é publicado pela Record. María Paulo Bolaños é colombiana e conta uma história (na verdade, duas) de um menino que vai ao shopping com a mãe e vê um daqueles quiosques de bichos de estimação. Entre os animais à venda está uma rã. Apesar da insistência do garoto, a mãe não compra o bicho (nem eu compraria, ora vejam). Em casa, ainda lastimoso pela vontade de ter o animal, o menino continua a pedir. Enquanto isso, a rã foge do shopping, pula, pula, pula e chega até a casa do menino, onde é recebida quase com um abraço. O lance é que a volta do guri para casa e a fuga da rã ocorrem em narrativas paralelas, uma pelo texto, outra pela imagem, numa demonstração muito bacana de multimodalidade, não-linearidade ou seja lá o que for que a leitura, o leitor e o texto são capazes de fazer (e Deus conserve!).

Noutras noites, meu menininho pede para ouvir e ver Zuiimm zuoomm ― Um zumbidinho bem grandão, uma estória de Maurício Veneza, com ilustração do autor carioca (de Niterói, na verdade), publicado pela Formato Editorial. Nesta saga com final feliz, uma família inteira se vê às voltas com o zumbido enlouquecedor de um mosquito (algo que aqui em Minas nós chamaríamos de pernilongo. Só para mencionar meu irmão biólogo, é a fêmea do pernilongo que faz aquele barulho chato). O pai, a mãe, o menino e as duas irmãs dele discutem um jeito de acabar com o zuiimm zuoomm, que, além de atrapalhar o treino de violino do garoto, impede que a mãe ouça a novela. Lá pelas tantas, depois das piruetas do mosquito, a irmãzinha caçula mata o inseto com um jornal enrolado. O mosquito vira apenas uma mancha na parede. O bacana de tudo é a ilustração, que diverte, conta a história e dá uma boa noção da chatice do pernilongo.

Ernani Ssó é o autor do livro do momento nas noites do meu bem. No escuro: a visita da bruxa, com ilustrações de Jótah, pelas edições Paulinas, conta a história de uma bruxa muito doidona que visita um garoto durante a noite. No quarto, ela tira de um saco de malefícios uns feitiços sacanas e atazana o garoto a noite inteira. Meu filho passa por aquela experiência do medinho misturado com carinho que só essas leituras na hora de dormir são capazes de propiciar. Gostoso demais tirar algum momento do dia corrido para fazer companhia a meu menininho, para protegê-lo da visita da bruxa, para explicar o que é malefício e para ouvir explicações sobre o bode Barnabé. Quem sabe um dia ele se torna um grande leitor? Tenho certeza de que nossas noites de medinho, debaixo das cobertas, serão sempre importantes para nós dois.

Ernani Ssó e Jótah conseguiram criar um climão escuro nesta história de bruxa, uns feitiços engraçados, narrados por um texto leve, poético, com tom de história oral, dessas que a gente ouve no interior. A bruxa tem um quê de doida varrida, mistura da dona Florinda com o Homer Simpson, sei lá. Descabelada, com garras, batom vermelho, pilotando um bode voador todo penteadinho, dona de um saco cheio de maldades e bichos esquisitos. Dudu fica doido é com o primeiro feitiço da bruxa, que transforma os olhos do menino protagonista em círculos do tamanho de pratos. Que horror. E que delícia. Assim, qualquer criança dorme abraçada com a mãe.

É claro que minha contribuição também acontece. Além das boas histórias, das lindas ilustrações e do clima de quarto à meia luz, trago à tona meus parcos dotes de atriz e faço vozes, entonações, sonoplastias. Não há como ler Zuiimm zuoomm, ou A visita da bruxa sem um tanto de envolvimento teatral. Mãe também é cultura.

Por último aqui, mas não menos impressionante, é o novíssimo A tartaruga e a boneca, da paulistana Márcia Leite, com ilustração belíssima do belo-horizontino Flávio Fargas e projeto gráfico de José Augusto Barros, editado pela Autêntica, editora que acaba de entrar na seara dos infantis, ainda bem, sob a batuta especialíssima da editora e escritora Sonia Junqueira. Uma garotinha deixa uma boneca cair no mar e começa a saga. A boneca, desesperada para encontrar a dona, viaja pelos mares em cima do casco de uma tartaruga, até perceber, décadas depois, que a amizade com a tartaruga se tornara mais importante do que a busca pela antiga dona. Não apenas o texto é bacana, como a ilustração é algo de impressionar adulto insosso. Meu guri, lá pelas tantas, me disse: "Mãe, eu quero entrar aí pra nadar com a tartaruga", de tão imenso, denso e bonito que é o desenho de Fargas. Criança é assim: não tem vergonha de se impressionar, de imergir, de experimentar. Adulto é que é bobo.

Márcia Leite conta uma estória inteira, com começo, meio e fim, em uma linguagem que beira o poético. Livro infantil me exaspera um pouco quando não tem qualidade. Qualquer texto ruim se casa com boa ilustração e o editor pensa que engana alguém. Criança, meus caros, sabe escolher. A tartaruga e a boneca é uma dessas escolhas felizes. Dudu fica meio impressionado quando a boneca mofa e perde um olho, mas é ainda aquele medinho que some com um afago da mãe embaixo das cobertas.

Em vez de dar celular pro sobrinho de 5 anos, por que não um livro legal? O segmento dos infantis no Brasil é tão bacana. Embora haja mais palheiro do que agulha, quem sabe minha dica de costureira ajude a fazer uns sobrinhos (e filhos e afilhados) felizes? Se só o livro for arriscar demais, que tal um livro e um carrinho? Mas não se pode esquecer de que dar livro de presente para criança é presente de grego para os pais. Não basta ter, tem que participar.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 12/12/2008

 
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