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Quinta-feira, 18/12/2008
Noite branca no cinema
Verônica Mambrini

O mundo está cheio de cinéfilos puristas. Em alguns lugares, eles se concentram mais do que em outros. Pedacinhos como aquele que vai entre o trecho da avenida Paulista, 900, em que o Reserva Cultural desfigura a fachada do prédio da Gazeta, com o agonizante Gemini logo ali, do lado, até a outra ponta da avenida, descendo pelos cinemas da Augusta, são perfeitos para achá-los (dizem os epidemiologistas que a espécie faz ninhos na região). Alguns têm um fenótipo claramente reconhecível: óculos de armação vermelha, tênis All Star em padrões exóticos, jeans sequinhos, quase colados ao corpo, eventualmente uma lomo à tiracolo. São curiosas as conversas que o vento sopra no ouvido de quem passeia no espigão da Paulista: o cardápio de diretores citados inclui clássicos de Fellini a Rohmer, exotismos orientais e muita, muita citação.

Nada tenho contra esses amores enciclopédicos, compulsivos e sistemáticos. Eu mesma, a meu modo, colecionei os meus queridos entre dezenas de títulos, todos devidamente catalogados por escola cinematográfica, diretor, fases de cada diretor. Mas nos últimos tempos, confesso que cansei um pouco. Resolvi cair de boca por um amor à antiga, pelo cinema, de simplesmente desejar a sala escura, quase que nem ver o que está em cartaz antes de comprar ingresso. Andei até dando um tempo para os diretores e suspirando pelos cantos pelo Louis Garrel. Que eu não seja confundida com a mocinha que vai ao cinema da cidade, louca para ver o galã e desanuviar do cotidiano triste, monótono e opressor, como a Cecília de A rosa púrpura do Cairo. Mas é que o Garrel, todo mundo há de convir, merece suspiros autônomos e independentes do diretor do filme, e é de lamentar profundamente que hoje seja tão mais difícil conseguir um cartaz bonito de publicidade do filme, com os atores, que valha a pena pendurar na parede do quarto. Mas divago; estava para falar do meu primeiro Noitão.

Eu já sabia da existência do Noitão há tempos. Funciona assim: sempre em uma sexta-feira, uma vez por mês, são exibidos três filmes no HSBC Belas Artes, em seqüência, com algum corte temático (ainda que essa "curadoria" muitas vezes exija algum esforço de imaginação para fazer sentido). Quase sempre, inclusos no menu, filmes raros, e nem sempre dos mais palatáveis. A maratona começa à meia-noite, e os sobreviventes, no começo da manhã de sábado, são congratulados com um café da manhã. Meus muitos planos de ir ao Noitão já tinham sido frustrados muitas vezes. Dessa vez, foi tudo perfeito: noite bonita, cardápio de filmes ótimos e companhia ideal ― acho que esse último era o ingrediente que sempre havia faltado. Ao menu da noite: pré-estréia de Rebobine, por favor, de Michel Gondry, Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen, e o terceiro filme, como habitualmente, seria surpresa. Calhou de ser uma comédia francesa divertida sobre uma trupe de teatro decadente: Les Grands Ducs, de 1996, dirigido por Patrice Leconte e com Philippe Noiret, o Neruda de O carteiro e o poeta.

O "novo do Woody Allen" é quase um ritual para perceber a passagem do tempo, e será de luto o ano em que ele não houver. Depois do pessimismo de Match Point e do O sonho de Cassandra, com tramas pesadas e fatalistas, é bom ver o humor de volta. Vicky Cristina Barcelona tem diálogos rápidos e teatrais, cheios de gags cômicas, com um sarcasmo muito mais saudável do que o cinismo dos dois filmes anteriores. Não preciso dizer que Penélope Cruz brilha, que Scarlett Johansson continua cumprindo com esmero seu papel de musa, nem que Javier Bardem e Rebecca Hall estão em boas atuações, tanto do Don Juan artista plástico quanto da acadêmica reprimida. Saltou aos olhos, porém, os quês de Almodóvar que o filme tem, como se Allen tivesse resolvido dar uma passadinha no diretor madrilenho antes de rodar seu filme na Espanha. As cores mais suaves e quentes, vagamente douradas de Vicky Cristina Barcelona são uma referência, assim como o próprio título do filme, que poderia muito bem ser almodovariano. A forma mais relaxada e intensa de conduzir a câmera nas cenas de sexo mostra um frescor que parecia ter morrido, nos sombrios filmes anteriores.

Conhecido no Brasil sobretudo por ser o diretor de Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Michel Gondry assina em Rebobine, por favor roteiro e direção, numa uma comédia despretensiosa e leve sobre filmes amadores, no sentido mais profundo da raiz da palavra. O personagem de Jack Black, Jerry Gerber, é magnetizado e, ao entrar na videolocadora onde trabalha um amigo, apaga sem querer todas as fitas VHS. Para tentar ganhar tempo antes que algum cliente entre em contato com o dono da locadora, Jerry coopta o amigo para a idéia de refilmar os títulos, rendendo fitas "suecadas" (aqui, ver o filme será melhor do que qualquer explicação) impagáveis. As refilmagens ultratoscas que fazem parte do repertório de locadora de bairro de qualquer um, como Os Caça-Fantasmas e Conduzindo Miss Daisy, é emocionante. É uma declaração de amor ao cinema de Gondry, impregnada de uma visão de mundo otimista, ao desenhar os laços de uma comunidade. Vale também pela naturalidade com que o diretor aplica ao longa o estilo construído nas dezenas de videoclipes de artistas como Björk, The Chemical Brothers e The White Stripes, cheio de planos-seqüência e efeitos especiais feitos só com a câmera.

A dica para quem se aventurar no próximo Noitão: roupas confortáveis, um pequeno estoque de cafeína, algum lanchinho e muita paciência. Talvez por conta da ótima seleção, o Noitão estava simplesmente lotado. Para evitar penetras, as portas da entrada do HSBC Belas Artes foram fechadas, e a quantidade de fumaça de cigarro estava de deixar tímido qualquer show de jazz. Impossível saber se foi a noitada em claro, mas a educação do público despencou com o correr do relógio, tornando um verdadeiro suplício a convivência de poucos minutos em qualquer uma das abundantes filas da sessão. Mas o prazer de sair com o sol nascendo e a alma lavada valeu agüentar um pouquinho de pirraça.

Verônica Mambrini
São Paulo, 18/12/2008

 
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