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Terça-feira, 6/11/2001
Um álbum que eu queria ter feito
Rafael Lima



Maurício de Souza meio que desmoralizou a expressão quando disse, na orelha do álbum Quadrinhos em Fúria, que Luiz Gê fez as histórias que ele gostaria de ter feito, afinal, até hoje ninguém conseguiu entender direito por que alguém que queria fazer histórias adultas de vanguarda em preto e branco acaba desenhando gibis coloridos para crianças. Mesmo assim, acredito que ela ainda esteja no prazo de validade para que eu possa utilizá-la aqui de novo: Jano fez o álbum que eu gostaria de ter feito.

Acho que a maneira mais fácil de apresentar Jano é simplesmente dizer que ele é o ídolo do Angeli. Não, o Angeli nunca reconheceu isso, mas já o vi numa entrevista na Tv listando as semelhanças: são da mesma geração, têm influência do underground norte-americano, fazem quadrinhos como se fosse rock'n'roll. A diferença, que ele não disse, conto eu aqui: Jano é francês, enquanto Angeli é paulista. Motivo suficiente para dar a uma história ares de mito, que troco de parágrafo para contar.

Diz que um belo dia Jano abriu o jogo com seu editor: andava insatisfeito com suas histórias em quadrinhos, estava precisando de uma reciclagem, seria bom dar uma parada. O editor achou razoável e enviou-o para uma viagem de férias de 6 meses na África. Ao fim dos quais, Jano retornou à França, criou um personagem novo, Keubla, pequeno contrabandista envolvido nas vicissitudes da sobrevivência entre as miseráveis aldeias alfricanas, e, mais importante: fez uma série de pranchas em aquarela captando paisagens humanas observadas em sua viagem, que acabou sendo publicado como o primeiro dos Carnets de Voyage de Jano: Carnet d'Afrique. Vendeu, foi um sucesso, e acabou transformando-o num desenhista globe-trotter, que passa parte de sua vida caçando imagens para seus cadernos de viagem (Hugo Pratt já fizera coisa semelhante muitos anos antes para compor as aventuras de Corto Maltese, primeira referência quando se fala em viagens e quadrinhos). E o Angeli? Teve que se resignar em não desgrudar a bunda da prancheta por mais de uma semana, que dirá seis meses na África, porque o mercado brasileiro de quadrinhos nem de perto se compara ao francês...

Acelerando um pouco a história, depois da África Jano veio a passar 3 meses viajando pela Índia, em companhia dos também cartunistas Dodo e Ben Radis, com quem criou Bonjour Les Indes, contendo texto e tiras em quadrinhos, ao invés de apenas ilustrações, no final dos anos 80. Por volta dessa época, seus únicos trabalhos publicadas no Brasil eram as primeiras histórias curtas de Kebra (de 78 a 82), ainda em parceria com Tramber, pela revista Animal. Apenas em 1991, com o lançamento de Wallaye! - que reúne as principais histórias de Keubla - pela editora Abril e a lindíssima exposição Ça, C'est la France en Bande Dessineé, por ocasião da 1ª Bienal Internacional de Quadrinhos, é que vim a conhecer direito o trabalho de Jean Leguay, dito Jano. Dois anos depois, a embaixada francesa traria uma exposição deslumbrante ainda que pequena, com alguns originais dos Carnets africano e indiano. Foi ali que eu fiquei particularmente impressionado com a imagem tocante de um pequeno povoado africano assistindo a televisão, e uma assustadora uma estação de trem indiana apinhada de pessoas dormindo, às vistas de dois impotentes policiais. Até um burro tinha na estação.

Durante os quase dez anos que se seguiram, pouco ouvi falar em Jano; soube que ele esteve na 2ª Bienal, em 93, quando podia ser encontrado mais facilmente no boteco em frente do que no pavilhão principal; soube que ele voltou para a terceira edição, já em Belo Horizonte, 1997, e mais nada. Mal sabia que, nesse meio tempo, os Carnets continuaram com Paname, um álbum completo sobre a cidade em cujo subúribio mora: Paris, provando que na sua casa de ferreiro o espeto não era de pau.

Em Paname ele consegue a difícil tarefa de conjugar recantos inesperados com palcos mais tradicionais de Paris: tem crianças brigando em frente ao laguinho do Jardim de Luxemburgo num domingo de sol, tem uma tentativa de rave numa catacumba, tem namorados fazendo piquenique no extremo da Îlle da la Cité, tem os engolidores de fogo que ficam na frente do Centro Georges Pompidou, tem as bancas que vendem livros antigos na Rive Gauche do Sena.
Depois, do nada, ouvi dizer que Jano estava vindo para o Rio de Janeiro registrar imagens da cidade para um álbum, com patrocínio da prefeitura. Seria possível que justo a minha cidade natal viraria mais um Carnet de Voyage? Notícias perdidas na imprensa, ao longo de 2000, avisavam que Jano tinha efetivamente se mudado para um casarão em Santa Teresa, onde ele moraria por algum tempo... Qual não foi minha surpresa quando vi, agora em outubro, numa livraria em Paris, o álbum Les Carnets de Voyage de Jano - Rio de Janeiro. Ele tinha feito.

Morro da Mangueira Não é preciso mais do que a capa da edição francesa para ver o estilo adotado: ao enquadrar o Pão de Açúcar no pôr do sol visto da praia do Flamengo, não deixou de fora a imundice que os banhistas deixam na areia, o catador de latas assediando aquele restinho de cerveja já quente tomado por uma mulher enrolada na bandeira do Brasil. Existe uma característica criticável nesse estilo que é um jeito meio Sebastião Salgado de ficar glamourizando o lado mais pobre das cidades - raros são os cartões postais que ele reproduz, e ainda assim, os que aparecem vêm sob ótica inusitada: pescadores noturnos se rendendo à poluição no bruxuleante cenário noturno da Lagoa Rodrigo de Freitas. E dá-lhe desenho de populares em Madureira, "le banlieu profonde", das favelas de São Carlos e do Vidigal, do Morro da Mangueira (visitado pela primeira vez ainda em 93). Até para o Burro-sem-rabo, catador de papéis, e Sem teto uma das 30 imagens foi reservada.

Mas há coisas inacreditáveis ali, e não falo do plano do anel interno do Maracanã a partir da torcida do Flamengo em dia de decisão. É quando ele captura certo tipo de riquíssima cena cotidiana que pode passar despercebida ao turista mais desatento (ou mais preocupado com as paisagens de cartão postal), fotografando o que talvez seja o espírito das ruas do Rio de Janeiro: a vitrine de uma loja em Madureira, no melhor estilo dos comerciantes do Saara; um engarrafamento no centro da cidade - onde se nota o nome do Ota, um de seus principais anfitriões em 93, pichado em um muro - onde a quantidade de vezes que os motoristas faziam o sinal de "tudo bem" com o polegar levantado o impressionou; um autêntico botequim pé sujo, refúgio da madrugada; os recantos de Pedra de Guaratiba e da Floresta da Tijuca; uma Paquetá irreal, que parece parada no tempo; os antigos prédios em estilo colonial português do Catete; o bonde de Santa Teresa, sobre cujos trilhos os bêbados voltam a cantar após uma festança; a feira de São Cristóvão. A propriedade com que Jano seleciona e reproduz os detalhes de cada uma dessas paisagens é de surpreender os nativos da cidade.

Luminária em Santa Teresa Na introdução, Wolinski, o Jaguar francês, que veio ao Rio com Jano em 93, conta como começou a história toda, fazendo um apelo: "É genial ter uma amigo que 'aquareliza' suntuosamente seus souvenirs confusos. Não me deixe jamais em todas as minhas viagens para imortalizar minhas lembranças e minhas emoções". Nem as nossas, nativos e moradores dos lugares que você visita, Jean.









Para ir além



Les Carnets de Voyage de Jano - Rio de Janeiro - edição francesa (Albin Michel)
Rio de Janeiro - Cadernos de Viagem - edição nacional (Casa 21 e Sinapse)



A edição nacional (capa acima) recebeu recursos do consulado da França, do Hospital Pró-Cardíaco e da prefeitura da cidade; o quadro escolhido para a capa foi o do calçadão de Copacabana. Foi do editor Roberto Ribeiro a iniciativa de produzir o álbum sobre o Rio, que acabou sendo publicado também pela Albin Michel na França.

O projeto Cadernos de Viagem visa retratar cidades brasileiras por diversos artistas; ao álbum de Jano devem se seguir o do catalão Miguelanxo Prado sobre Belo Horizonte; o do português Luís Louro sobre São Paulo, e o do niteroiense Marcelo Gaú sobre Salvador.

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 6/11/2001

 
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