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Segunda-feira, 5/1/2009
Leis de incentivo e a publicação independente
Pilar Fazito

"Todo aspirante a escritor deveria frequentar sebos para ver o que a poeira e os ácaros fazem com a gente." (Marçal Aquino)

Saem os milicos, entra a transição via Sarney, "fora Collor", Itamar, FHC e Lula. Ufa! Noves fora, se contarmos os 20 anos de ditadura e os 30 seguintes de democracia, a verdade é que nunca estivemos tão bem em termos de incentivo à produção cultural como agora ― o cinema que o diga, com os seus mais de 180 festivais anuais pelo país e a crescente produção de filmes nacionais. E se essa crise econômica não estragar tudo, cinema, literatura, música, artes plásticas e até mesmo categorias híbridas continuarão a se beneficiar das leis de incentivo que, se por um lado estimulam a produção, por outro ainda não resolvem o eterno gargalo da distribuição. Somadas as polêmicas em torno dos critérios de seleção dos projetos, o que é para ser considerado uma ajuda para toda a classe artística acaba virando motivo de disputa e acomodação.

Num ponto, pelo menos, todos concordam: as leis de incentivo não são o ideal, mas ao menos já são alguma coisa. E o que seria o ideal? Independentemente da área cultural, o melhor seria que o artista tivesse meios de sustentar a própria produção, garantir a distribuição e ter lucro com a venda de seus trabalhos, sem depender de mesada, financiamento, donativos ou esmola do governo e de quem quer que seja. A esta idéia, dá-se o nome de "indústria cultural" e, como qualquer indústria, o artista se auto-sustentaria com o seu trabalho. Mas aí começam os problemas e as discussões. Em geral, muitos artistas têm urticária só de ouvir o termo "indústria", como se isso significasse a pasteurização e a produção em massa de sua arte. A finalidade comercial prevaleceria, descaracterizando o espaço autoral, as inovações artísticas, os manifestos ideológicos etc. Logo, sua arte perderia o caráter exclusivo e, consequentemente, deixaria de ser arte.

Por outro lado, não é possível viver exclusivamente de arte sem pensar no seu escoamento e na sua comercialização. Exceto quando alguém ― ou alguma herança ― se dispõe a financiá-la e, nesse caso, o financiador recebe o nome de mecenas. A história está cheia deles, como no caso do Rei Luís XIV, sem o qual Molière talvez não entrasse para a história.

O conceito de indústria cultural é bem recente e, claro, surgiu nos Estados Unidos, onde tudo virava business até o dia em que o presidente Bush quase levou uma sapatada iraquiana. Bem antes disso, arte e mecenato eram conceitos siameses, o que não quer dizer que artistas não pudessem vender seus trabalhos para pagar as contas. Balzac, por exemplo, escrevia sob encomenda para um editor, garantindo, assim, o pagamento das contas do bar que freqüentava. É bem verdade que ele era um boêmio muito enrolado, atrasava a entrega dos livros e dizia que estava terminando a obra quando ainda não havia sequer começado a escrevê-la. Em seguida, tirava o atraso e escrevia direto, durante mais de quinze horas por dia, movido a xícaras e mais xícaras de café. Lambão desse jeito, o escritor conseguiu criar a Comédia Humana, universo literário composto por 88 romances, cada um melhor do que o outro. Diga lá...

Balzac não era nobre e escrevia por necessidade, diferentemente de Montaigne, que podia se dedicar aos seus ensaios do alto da torre de seu castelo. Temos aí dois retratos de algo que não mudou nada ao longo do tempo: a arte sob demanda e a arte pela arte. Em outros termos: os primórdios de uma indústria cultural e o mecenato. A diferença da França de outrora para o Brasil de agora é a institucionalização do mecenato, que, apesar de apregoar o "incentivo" à formação de uma indústria cultural, pouco tem feito nesse sentido: em vez de estimular a auto-sustentação de empresas e artistas, tem mais é contribuído para a acomodação de muitos setores.

Antes de receber pedrada, explico melhor o ponto de vista. A grosso modo, atualmente estão em vigor duas formas de incentivo que os governos federal, estadual e municipal disponibilizam para a área da cultura no Brasil. Na primeira, o projeto cultural recebe o dinheiro de um fundo próprio e, nesse caso, o artista embolsa o financiamento diretamente do governo. No segundo caso, o governo autoriza uma quantia determinada para a renúncia fiscal de empresas em troca do financiamento do projeto do artista. Essa modalidade recebe o nome de Incentivo Fiscal e é como se em vez de a empresa pagar R$ 10 mil de impostos ao governo, investisse esse dinheiro em projetos culturais.

A prestação de contas é indispensável em ambos os casos, mas o fundo dispensa a fase de captação, ao contrário do incentivo fiscal. Ou seja, como o dinheiro do fundo é previamente determinado, se a comissão da lei aprovar R$ 10 mil para um projeto que requer a publicação de um livro, por exemplo, ele receberá os R$ 10 mil que já existem nos cofres do governo. Se esse mesmo projeto for aprovado na modalidade de incentivo fiscal, o dono do projeto tem um prazo para fazer a captação: correr atrás de uma empresa que tope dar de cara os R$ 10 mil, ou correr atrás de várias que dêem R$ 10,00 cada, na esperança que de grão em grão a galinha encha o papo.

O teto da modalidade de incentivo fiscal é maior e, portanto, a única opção para projetos vultosos. Ainda assim, muitas peças de teatro, publicações de livros e outros projetos que prevêem duração, produção e público menores são aprovadas dessa forma. O desafio, para eles, é exatamente a captação de verba, já que concorrem com eventos grandes e consagrados, que tendem a dar maior visibilidade às marcas das empresas patrocinadoras. Convencer uma empresa a financiar eventos menores vai depender mais de relações pessoais e da contrapartida que o projeto dará em termos de publicidade do que da qualidade da proposta. Por mais que o artista anônimo seja talentoso, se ele encontrar um ator global no corredor da empresa, já sabe que perdeu o páreo e é melhor pedir R$ 10,00 na papelaria da esquina.

Essa frustração causa uma polêmica enorme no meio cultural: entidades famosas e consagradas deveriam/poderiam pleitear o incentivo? Ou ele deveria ser restrito a quem não tem eira nem beira?

No que concerne ao uso de leis de incentivo para publicações literárias independentes, o problema é outro e tem a ver com a falta de bom senso de muito candidato a escritor. É claro que os critérios de seleção dependem da qualidade do material a ser publicado e, por isso, nem preciso dizer o quão absurdo são os projetos que não enviam o texto para apreciação, mesmo que a exigência venha expressa no edital. Entretanto, o mais grave é que os proponentes desses projetos geralmente têm dificuldade em distinguir as etapas de uma produção literária e sua adequação aos editais. Eles entram com a proposta de publicação e requerem, por exemplo, remuneração pela escrita do livro, algo que já foi feito e que ninguém pediu que eles o fizessem.

Nesse sentido, é preciso deixar claro que o dinheiro público só "remunera" um autor pela escrita de um livro por meio de prêmios de residência artística, concursos e bolsas literárias. Já as leis de incentivo (fundo e incentivo fiscal) não se prestam a isso por uma simples razão: elas não financiam escrita de livros, nem contratam escritores. Elas empenham a função de mecenato e dão apoio para o autor publicar o próprio livro, mas não encomendam um texto ― caso isso acontecesse, estariam livres para estabelecer temas e interferir na obra. Por isso, além de não fazer sentido, chega a configurar abuso do dinheiro público quando um autor enfia na planilha orçamentária de seu projeto o item "remuneração do autor".

Se pararmos para pensar, o escritor que tem seu projeto aprovado por uma lei de incentivo ― qualquer que seja a modalidade ― teve liberdade para escrever o que quis e não arcará com os custos de edição, editoração e publicação ― cujos gastos são cobertos pelo programa. Além disso, continuará sendo o único detentor dos direitos autorais sobre a obra e, ainda por cima, ficará com o lucro sobre a venda dos livros. Geralmente, a contrapartida devida aos órgãos de cultura do governo restringe à doação de 5% a 10% dos livros para bibliotecas, escolas etc. e a presença de uma logomarca na capa, indicando o fomento; quase nada, se comparado às porcentagens de uma editora.

A vantagem de se publicar através de grandes editoras é que o autor não tem que se preocupar com a distribuição de seus livros, já que a tarefa está incluída na alta porcentagem que elas abocanham nos contratos. Mas as editoras não se interessam por autores considerados "desconhecidos", alegando a dificuldade de escoamento da produção e, consequentemente, a perda de lucro.

Se as editoras já reclamam disso, imagine quando a publicação é feita de forma independente e o autor tem que se virar sozinho para distribuir seus livros. Muito frequentemente, os autores que recorrem às leis simplesmente ignoram essa etapa e não planejam como será feita a distribuição. Por isso, chega a ser ridícula a proposta de uma tiragem de mil a 3 mil exemplares, por exemplo. Mesmo que o escritor tenha outros livros publicados, esse número é exagerado. Se se trata de sua primeira publicação, é insano.

Sem um esquema de distribuição profissional, com base na promoção da imagem do autor e da obra não apenas em âmbito local, mas nacional, o mais certo é que daqui a três anos os volumes continuem encalhados na casa do escritor, servindo de calço para a geladeira. E mesmo que ele tenha 3 mil amigos no Orkut, se conseguir que 50 comprem seus livros será muito. Com tanto livro sobrando, o autor incauto começa a distribuir "prá galera", só para se livrar da quantidade de papel.

O resultado dessa falta de planejamento é a falta de lucro com a venda do livro, desperdício de dinheiro público e incentivo nulo para a cultura, já que o produto foi despejado no mercado feito lixo, sem gerar recursos que garantissem a auto-suficiência do autor. Se ele diminuísse a tiragem para um número mais real, teria mais facilidade em conseguir vender os volumes e, com o lucro, poderia financiar a publicação de seu livro seguinte, sem haver necessidade de recorrer novamente à lei de incentivo. Neste caso, as leis estariam trabalhando em prol da construção de uma indústria cultural e, aí sim, estaríamos falando de incentivo: ensinar a pescar em vez de dar o peixe.

Por fim, leis de incentivo também não deveriam financiar reedições. Quando há grande demanda por uma reedição, é mais fácil haver o interesse das editoras e, portanto, a lei de incentivo torna-se desnecessária. E se não há demanda, há ainda menos necessidade de desperdiçar grana para entulhar sebos com mais papel ignorado e ácaros.

Obviamente, cada área artística é um caso e a discussão não termina aqui. Ainda bem, porque precisamos mesmo refletir sobre formas melhores de garantir que o dinheiro público ― meu, seu e de todos nós ― gere possibilidades, em vez de ser disputado a tapa, gasto sem critérios e evaporar por iniciativas e caprichos pessoais.

As leis de incentivo ainda são o que temos de melhor para a área cultural, mas quem lida com elas sabe exatamente os nós que precisam ser desatados. E essa tarefa não depende apenas do governo, mas também do comprometimento de quem se serve dessas leis e das empresas, que deveriam mesmo incentivar a cultura, em vez de usar a renúncia fiscal como moeda de troca para publicidade. Mas isso já é material para um outro quiproquó ― agora, sem trema.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 5/1/2009

 
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