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Terça-feira, 6/10/2009
A boa literatura brasileira
Rafael Rodrigues

Faz meses que estou rodeado de livros de autores nacionais. Recentemente resenhei aqui Fichas de vitrola & outros contos, de Jaime Prado Gouvêa; acolá eu resenhei Elza, a garota, de Sérgio Rodrigues; Leite derramado, de Chico Buarque e De paixões e de vampiros, de Ruy Espinheira Filho; terminei de ler há pouco tempo Cine Privê, excelente livro de contos de Antonio Carlos Viana; e estou lendo, agora, os romances Suíte Dama da Noite, de Manoela Sawitzki e Mundos de Eufrásia, de Claudia Lage. Mas não sem antes ter lido Mentiras do Rio (Record, 2009, 144 págs.), de Sergio Leo, vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2008 na categoria Conto.

Além desses, tenho recebido muita coisa interessante. Comecei a ler alguns e só não continuei por conta de compromissos mais urgentes. Exemplos: A boca da verdade, de Mario Sabino; Um náufrago que ri, de Rogério Menezes; Delacroix escapa das chamas, de Edson Aran e Retrato desnatural, de Evando Nascimento (para ficar só entre os que eu realmente li mais de vinte páginas). Todos esses livros me agradaram muito, principalmente Um náufrago que ri, que tem um gato como narrador.

Dos onze títulos citados até agora ― não citarei mais nenhum outro, acho ― apenas três não foram publicados este ano. Semanas atrás, quando me dei conta disso, fiquei intrigado. Eu pensava: "Que raios está acontecendo? De onde saiu tanto livro bom ao mesmo tempo?". E isso porque estou falando apenas dos que estão aqui ao alcance dos meus olhos gastos. Se eu for fazer uma viagem à roda do meu quarto, teria de citar pelo menos mais uns sete. O que não seria de todo ruim... Mas enfim.

A questão é que, ao que me consta, desde 2003 não são publicados tantos livros bons de autores nacionais. De lá para cá muita coisa boa foi lançada, óbvio. Mas de 2008 para cá a quantidade e a qualidade parece ter, no mínimo, dobrado. Arrisco dizer que, desde quando comecei a acompanhar os lançamentos e a ler mais os autores nacionais (ou seja, 2003), a literatura brasileira vive seu melhor momento. Por isso, fiquei surpreso ao ler o artigo "Cadê a boa literatura brasileira", de Luis Antonio Giron, publicado recentemente na revista Época.

No texto, ele afirma que "A grande literatura brasileira tão cultuada já não existe mais" e que "As editoras (...) não se esforçam. Não apostam em bons autores, preferindo investir naqueles escritores que deem retorno". Não obstante algumas verdades ditas por Giron ― autor de um belo livro de contos, aliás, Até nunca mais por enquanto ― ao longo do texto, os dois primeiros parágrafos dele ― dos quais foram retirados os trechos em aspas ― são um tanto quanto desalentadores, para não dizer pessimistas e, para mim, irreais. Porque, acredito eu, acontece justamente ao contrário.

Não acho que "a grande literatura brasileira (...) já não existe mais". A não ser que estejamos falando de obras-primas de Machado, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha. Aí, tudo bem. Realmente, não lembro agora de escritor contemporâneo que se equipare a algum dos três caciques. E, francamente, acho isso muito bom. Não precisamos de outro Machado, Rosa ou Euclides. Precisamos ler e reconhecer os autores contemporâneos, aqueles com os quais podemos interagir, ler entrevistas, vê-los em Bienais falando sobre suas obras e sua carreira.

Como disse, tenho gostado ― e muito ― do que tenho lido ultimamente de autores nacionais. Mas muito, mesmo. Mentiras do Rio, por exemplo. É um livro fantástico. Venho tentando acompanhar os vencedores do Prêmio SESC, porque um concurso como esse, cujos vencedores são publicados pela maior casa editorial do país ― a Record; e me corrijam se eu estiver errado ―, teoricamente é sinal de alta qualidade. Atenção para o "teoricamente".

Li os vencedores da categoria Conto de 2005 e 2006. Nenhum dos dois livros me agradou ― principalmente o de 2006, que me deixou muito aborrecido. Pulei o premiado em 2007 por precaução e, por ter chegado até mim o vencedor de 2008, resolvi ler, mesmo estando com "um pé atrás", achando que era mais um livro "mais ou menos". Felizmente, fiquei empolgadíssimo com "Mentiras do Rio" desde o primeiro conto, "Cabeça de porco", uma história delicada sobre a solidão e a necessidade de companhia que a maioria das pessoas tem ― apesar de o título não insinuar isso. "Congresso de pijama", o conto seguinte, traz um grupo de amigos e conhecidos que, durante um churrasco, brincam de ser outras pessoas: dois "são" deputados, outro "é" um juiz e "há" também um corretor de imóveis; além desses, outros coadjuvantes completam a história, que, além de divertida, faz pensar nas mentiras que contamos para nós mesmos ― e como elas, muitas vezes, nos iludem e nos fazem acreditar que são verdades. O terceiro conto, "Monólogo do flanelinha", é um contaço. Muito bem escrito, muitíssimo bem enredado, excelente.

Aliás, é assim todo o livro: bem escrito, com histórias muito interessantes, em sua maioria inusitadas e divertidas ― mesmo que não engraçadas ―, e todas de enorme qualidade literária. Para não falar sobre todos os contos, destaco "Mentira", uma história que lembra o primeiro conto de Fichas de vitrola, pelo fato de o narrador falar abertamente com o leitor sobre a escritura do texto; "Não dá para voltar ao Rio", no qual Sergio Leo brinca com os diversos caminhos que o personagem poderia seguir durante o desenrolar da história e como suas escolhas o levam a um assalto que chega a ter um final engraçado porém revelador; e "Uma janela para a Zona Norte", que versa também sobre a solidão, como o primeiro conto, mas, enquanto este é divertido, aquele é melancólico, quase triste.

Mentiras do Rio é uma das várias provas de que os autores contemporâneos têm, sim, muita qualidade. O que acontece é que livros como este, de Sergio Leo, não têm grande exposição na imprensa. Livros como esse não têm o reconhecimento que deveriam ter. Enquanto determinados escritores, quando lançam um livro novo, são resenhados por 97 críticos literários e setecentos e trinta e oito blogueiros, autores como Sergio Leo, Jaime Prado Gouvêa, Rogério Menezes e tantos outros não têm a atenção que merecem.

Na minha opinião, a maioria dos leitores brasileiros e até mesmo boa parte dos críticos literários prefere não arriscar leituras. Acabam lendo e comentando obras de escritores consagrados ou daqueles quase consagrados sempre em voga. Acho que falta um espírito mais aventureiro, de desbravador. Há alguns anos eu sinceramente não recomendaria a ninguém fazer isso. Mas, agora, se o leitor aceita um conselho, aqui vai: na próxima vez em que for a uma livraria, se dirija à seção de autores nacionais e se deixe levar por alguma capa ou título que lhe chame a atenção. Retire o livro da estante, leia a orelha ou as primeiras páginas. Esqueçam, só por um momento, aquelas recomendações de sempre. Permita-se descobrir um livro bom, do qual você não tinha ouvido falar ainda ― ou sobre o qual tinha lido apenas um texto, como este.

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 6/10/2009

 
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