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Quinta-feira, 5/11/2009
Entre mudanças e descartes
Vicente Escudero

Manhã quente e eu pensando que poderia ter trocado o piso de madeira da casa pela areia da praia ou de outro canto qualquer, só para passar o feriado e esquecer a metade do que penso. Mas ainda é véspera, a maioria das pessoas levanta da cama ansiosa, fazendo mais de duas coisas ao mesmo tempo, planejando quanto tempo perderá no engarrafamento do trânsito durante a viagem ou, com um pouco de sorte, a diferença entre os horários prometidos e cumpridos dos voos, em algum aeroporto.

Enquanto o piso e a parede não se abrem para o horizonte, acordo e cumpro satisfeito o ritual do café da manhã. As roupas guardadas no armário aos poucos assumem a silhueta do corpo, bem como suas virtudes, e quando vestidas antes do trabalho exigem a pontualidade. Como um soldado escondido na trincheira, espio pela fresta da janela do apartamento o sol forte de verão refletir na lataria dos carros estacionados por toda a rua. Já estou pronto para sair.

O caminho para o trabalho nem acaba e já são dez da manhã. Dez e vinte. Dez e quarenta. Ah, com seria bom se fosse seis da tarde e... rua! As tarefas encerradas, as pessoas caminhando rápido pela rua, tudo conspira para que o dia se encerre antes de começar a tarde. Olho-me no reflexo da janela e arrumo a gravata. Ainda estou no escritório? O telefone toca.

Sim, alguém desaparecido resolveu procurar pelo meu nome lá no final do índice da agenda, depois de tentar, sem sucesso, reencontrar várias outras pessoas. Um minuto gasto para os cumprimentos e outro para descobrir que eu caíra numa roubada. O dito cujo estava de mudança, precisava de ajuda para desmontar, empacotar, e desatarraxar a mobília da casa. Esta lista extensa do procedimento foi apresentada aos poucos, como pequenas marteladas firmando o prego na madeira. Eu titubeava, ele pregava a ideia. Até o momento do questionamento sobre quem carregaria as caixas, quando fui peremptório: carregar, não. Mas ele foi dizendo que tinha pouca mobília, que minha ajuda seria mesmo necessária para desmontar os móveis, assumiu que estava envergonhado por ligar depois de tanto tempo só para pedir ajuda, chorou as pitangas que eu era culpado por ter sumido no final do curso na faculdade e todo aquele blablablá de amigo envergonhado. Aceitei a tarefa para as oito horas da noite, numa véspera de feriado.

Talvez pela ansiedade em ajudá-lo na mudança, comecei a perceber que as horas durante a tarde estavam cheias de minutos extras. Duas e quarenta e um. Duas e quarenta e dois. Duas e quarenta e três.

Oito horas da noite. Encontrei o sujeito vestido como um empreiteiro profissional, usando um cinto de utilidades, esperando na porta do apartamento com um sorriso ― suspeito ― de alívio. E devia ser mesmo, pelo tamanho da estante, presa na parede, que ele pretendia desmontar no meio da sala. Parafuso vai, papo vem, as horas passaram. Duas horas para desmontar toda a mobília da sala, mais uma hora para desmontar a dos quartos. Trabalhamos sem que um parafuso sequer caísse no chão, perturbando os vizinhos.

Hora de empacotar os objetos pessoais. Roupas, livros, rádio e mais um monte de tralha. "Isso foi minha namorada que me deu", "Essa estátua ganhei da minha avó", "Essas fotos são de quando eu tinha quinze anos".

Dividimos as tarefas. Enquanto ele empacotava os utensílios domésticos na cozinha, eu continuei na sala, guardando algumas relíquias encontradas no fundo do armário de um quarto. Livros em uma caixa. Equipamento de mergulho sem uso, noutra. Certificados do curso de bacharelado, pós-gradução e históricos de desempenho, junto com os livros.

― E esses álbuns de fotos? Coloco numa caixa separada?

― Ah, sei lá, é tudo velharia... Guarda na caixa com a papelada do meu trabalho...

Faltou espaço para um álbum. Fui até a cozinha carregando-o, depois de ouvir um barulho esquisito, como se uma grande chapa de metal entortasse lentamente.

― Sobrou esse aqui, você leva no carro? Não vou colocar só ele numa caixa...

― Ah, deixa eu ver... ― e segurou o álbum enquanto tentava girar a chave de fenda na parede, com a outra mão.

― Nããã... pode jogar no lixo... Essas fotos são do casamento da minha prima... Ela separou do cara há um ano, não quero nem ouvir falar disso aí. Joga fora...

Voltei para a sala, sentei no chão e comecei a folhear o álbum. Todos os noivos, fotografados de longe, são iguais. À medida que se aproximavam da câmera, os sorrisos eram focalizados. Eu já os acompanhava, sorrindo a cada vestígio de alegria.

A noiva era alta, seu cabelo, liso e longo, castanho-escuro. Os ombros estreitos, realçados pela postura reta e os braços finos irradiavam uma elegância natural invejável.

Continuamos com a mudança, carregando as caixas para dentro do caminhão, até que ele partiu carregado. Na despedida, além dos cumprimentos, fui questionado sobre o tal álbum de fotos do casamento.

― Você jogou fora aquele álbum, não jogou?

― Joguei, sim.

― Ainda bem. Aquele cara sacaneou a minha prima. Eu achava que tinha dado um fim naquilo.

As memórias, num dia qualquer, desaparecem. Deixei o prédio com a sensação de dever cumprido, apesar de ter mentido e carregado o álbum de fotos do casamento comigo. Dentro do carro, antes de partir, folheei as fotos novamente, tentando recordar algo familiar.

Era a noiva. Conversando com as amigas numa mesa, apoiando o queixo sobre uma das mãos, reconheci o mesmo gesto feito por ela quando a vi pela primeira vez, nos meus quatorze anos, na agência bancária em que ela era a gerente. Eu trabalhava como contínuo para meu pai, que me instruíra para não ficar muito tempo esperando na fila do banco, se tivesse que estudar durante a tarde. Nestes casos, devia deixar os pagamentos com a gerente e retirar os recibos no dia seguinte.

Ela tinha vinte e dois anos de idade, eu meros quatorze. Um dia, por necessidade ou preguiça, fui até a sua sala deixar os pagamentos para que fossem feitos no fim do expediente. Ela me atendeu solicita, enquanto rabiscava alguma coisa numa folha de sulfite, com a mesma leveza do dia do casamento. Olhei o papel com cuidado e reparei que se tratava de um esboço a lápis.

― Você é pintora? Esse desenho parece com aqueles do Goya...

― É só um hobby. Sabe... Você é um menino muito bonito e educado. Se fosse mais velho, seria sua namorada.

Saí de lá roxo de vergonha. Nas outras vezes em que fui à agência, sempre que a encontrava, conversávamos sobre os tais "desenhos". O banco um dia fechou, nunca mais nos vimos.

Entre o verso de duas fotos, dentro de uma das páginas de plástico do álbum, encontrei o convite de casamento, rabiscado com um número de telefone. Oito anos de diferença e quatorze anos desde o fechamento da agência. Tempo demais para não arriscar uma mudança.

Vicente Escudero
São Paulo, 5/11/2009

 
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