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Sexta-feira, 11/6/2010
Caçar em campo alheio ou como escrever crônicas
Ana Elisa Ribeiro

Se fôssemos desenhar o cronista, poderíamos dar a ele uns traços finos e a anatomia de um ser com uns olhões bem abertos, talvez sem pálpebras, para que ele não possa piscar; umas mãos leves, cujos movimentos finos o ajudem a anotar, seja lá em que dispositivo for, analógico ou digital; trajando um macacão cheio de bolsos, de todos os tamanhos, nos quais ele põe bloquinhos, cadernos, notebooks, lápis, canetas e toda sorte de equipamento que o ajude a anotar impressões, ideias, fontes, trechos verbatim do que ouviu, alinhavos de papos em que se intrometeu, deixas, acertos de contas, respostas a eventos ou a questionamentos, visões de algo muito feio ou muito ao contrário, esquemas de textos que começou a projetar, textos inteiros que lhe caem dos fundilhos do cérebro, insights que partem de átimos de palavras de outrem, delírios que jamais sairão do papel-jornal ou do papel que embrulha o pão. Além disso, nosso desenho poderia retratar alguém de pernas longas e fortes, capazes de correr o mundo em um segundo; uma boca fechada, onde não entram mosquitos, mas de onde surrupiam-se palavras. No entanto, as mãos são abertas como donas fofoqueiras ou, melhor ainda, como prostitutas bem baratinhas. Em tudo ele repara, mesmo quando não pode ver, e de tudo ele fala, mas sempre na forma de transmutação. É assim: onde o sujeito vê milagre, o cronista vê parágrafo inteiro; onde a moça vê beijo, o cronista vê descrição; onde o menino vê bola, o cronista vê coração; onde a menina vê poá, o cronista vê céu estrelado; onde o cara vê motocicleta, o cronista vê sensação; onde qualquer um vê rua, o cronista vê passagem. E assim vai. O cronista enxerga, muito embora possa padecer de um imenso cansaço por ficar vendo nascer de tudo algo estrondosamente poético.

Em todo livro didático, dicionário ou glossário em que se vai pesquisar está escrito que o cronista é observador. É uma espécie de escritor que se vale dos fait divers, digamos assim, um ser de longas antenas que vem colhendo o dia a dia e traduzindo tudo em parágrafos ou em textos fáceis de ler. O cronista, segundo esses materiais didáticos, é um sujeito que sai por aí vivendo as coisas ou espiando as vivências alheias para depois recompor, recontar, redizer, retrabalhar e distribuir para todo mundo. Uma espécie de pescador, atirador, garçom, namorador, apicultor, botânico, lavrador, apanhador de espécies novas para um imenso borboletário. Não é jornalista, cata fatos (embora muitos jornalistas se tornem cronistas), mas é um escritor que caça os sensíveis dos fatos e, às vezes, nem isso. Nem tudo é fato, não é? O historiador francês Michel de Certeau dizia que o leitor é caçador em campo alheio, morador de apartamento alugado. O cronista é um leitor das coisas, desse tipo aí, meio inquilino, só que ele ainda se mete a dizer as coisas, desdizê-las também ou redizê-las para ver se faz nelas uma plástica.

O cronista não fica em paz. Ele não vive como a maior parte das pessoas vive. Ele não consegue. Ele não participa de uma festa só bebendo e comendo como os demais. Ele não ouve uma conversa de um jeito despretensioso. Ele não sabe guardar segredos. Ele não pode ficar sabendo das coisas que parecem comuns aos outros. O cronista é um catador de papel usado. Um reciclador de historinhas travestidas de comuns. Um cronista é Midas. Ele pega pedrinha feito brita e faz dela um topázio, uma turmalina ou uma água marinha dessas de mais baixo valor. O efeito, o cronista gosta é do efeito, feito a Channel. O cronista vai às festas para conversar, assim como vai ao bar, ele não se espanta com tanta gente falastrona. Quanto mais verbo solto, mais terreno para o cronista. O cronista deixa a polêmica rolar. O cronista não diz "deixa disso". O cronista é meio voyeur ou meio sádico. O cronista é do artesanato, mesmo quando escreve no computador de último tipo. E embora este cronista aqui descrito seja o operador de palavras, cronistas podem ser de variada estirpe, usando também variado método, havendo deles que tiram fotos, outros que desenham, ainda os que pintam e os que usam aí outras linguagens de efeito.

O cronista se separa da esposa (ou do marido, no caso da cronista ou do cronista gay) e não liga tanto para a partilha. No mesmo dia, depois que ela sai com as melhores malas, ele começa a se preocupar com a crônica que aquele evento vai gerar. Se for texto ruim, a separação não valeu a pena. É esperar pela reconciliação para ver se ocorrem umas trovas melhorezinhas. O cronista não dá vexame sem calcular o rendimento dos parágrafos de humor. O cronista não se restringe às narrativas com começo, meio e fim. O cronista participa da vida dos textos.

Um cronista não se mete a romancista. A veia inventiva do cronista não é tão forte. O cronista depende muito mais das pequenas sortes do cotidiano. O romancista cria demais. O cronista recria.

Há cronista que goste de argumentar, mas esta subespécie flerta com o articulista, debatedor de ideias. Há cronistas que vivem da reinvenção de histórias. Há os que são meio poetas às escondidas. Uns tipos são mais raros do que outros. Há aqueles cronistas que atravessarão o tempo. É como ler assim um Rubem Braga e custar a descobrir de que época é aquele texto. No caso de uns outros, é fácil saber das datas, já que os assuntos são os presidentes, as políticas, os jogos de futebol. Há cronistas que vivem como se pisassem de leve na grama dos parques alheios. E todo cronista tem uma crônica sobre a falta de assunto, para coroar o lado humano de quem está caladão de vez em quando.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 11/6/2010

 
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