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Quarta-feira, 5/1/2011
Ribamar, de José Castello
Isabel Furini

Se você quiser voltar os olhos ao passado, não para desenhar a falsa imagem positivista de que todo tempo passado foi melhor, mas para olhar com honestidade, recomendo a leitura do romance Ribamar (Bertrand Brasil, 2010, 280 págs.), de José Castello.

Tive a sorte de participar de uma oficina de Crônicas que Castello orientou na Fundação Cultural de Curitiba. Uma amiga havia comentado que ele é um grande orador, e eu o imaginei um mago da palavra: apaixonado e inovador, capaz de jogar um livro pela janela (isso acontece muito nos filmes). Mas o jeito calmo de Castello, reservado, a estrutura de sua aula, ao estilo de um professor universitário, devo confessar que me incomodou no início. Pensei em participar por um mês e depois decidir se daria continuidade. Acho que foi na terceira aula que Castello fez um comentário, não me recordo exatamente sobre o que, mas lembro que me atingiu em cheio. "Esse cara é um gênio", pensei.

Algo semelhante acontece com Ribamar. O livro é uma viagem que permite olhar a paisagem e pensar na própria vida, fazer inventários de acontecimentos reprimidos que voltam à consciência.

Castello mostra que teve grande trabalho para dar dimensão ao personagem que dá título ao romance, mas esse trabalho nem sempre é percebido pelo leitor. Entramos na história, o autor vai introduzindo os personagens, tópicos da vida que a maioria prefere esconder, talvez porque a sociedade moderna nos tenha ensinado a arte da hipocrisia ― somos da época do botox e do Photoshop, época em que é difícil envelhecer... com honestidade. Por sorte, o livro do Castello foge disso, afasta-se de banalidades, leva-nos pela mão para a época de criança e para o mundo das recordações, é quase um convite para abrir o livro da própria vida, o álbum escondido, e reviver fatos, emoções, como faz o personagem.

O relato da viagem ao Piauí, cidade onde o pai de José passou a infância e a juventude, é também uma busca do passado, talvez para encontrar o próprio eu, para entender-se como subjetividade. "(...) este livro é uma travessia. Não escrevo sobre você. Eu escrevo através de você".

A música que ele intitula "Cala a boca" o persegue, e então decide: "o livro que escreverei, Ribamar, terá a estrutura dessa canção".

Paralelamente à história do menino, aparece o livro Carta ao pai, de Franz Kafka, que o narrador dá ao pai em 1973. O filho se pergunta se o pai alguma vez olhou o livro. Vemos a identificação Hermann Kafka-Ribamar ― pais repressores e inesquecíveis.

O leitor pode perguntar-se: personagem ou autor estão identificados com Kafka? Difícil dizê-lo. Castello gosta de brincar com nossa curiosidade. Ele não entrega suas memórias, Ribamar não é uma biografia, o escritor reconfigura suas recordações. Essa viagem interior não é para reconstruir uma história real em todos os detalhes, mas para reconstruir seu mundo emocional e subjetivo. O romance lhe serve de espelho, um reflexo de seus estados internos de consciência.

Ribamar não é um livro simples. Não é confissão nem desabafo, é literatura. Nunca sabemos quando o autor está fazendo uma confissão ou está contando um fato imaginário. Ribamar encoraja o leitor a olhar para dentro, para descobrir-se. É possível descobrir esse caminho aberto a novas descobertas no excelente final. Quem será o próximo a sentir a influência de Kafka?

Muitos de nós, ao ler Carta ao pai, em algum momento sentimos desejos de gritar: O pai de Kafka representa meu pai. Sentimos que Ribamar, agora velho e doente, já foi um homem poderoso aos olhos da criança. Ribamar influenciou José. Influenciou o caráter, a personalidade do "menino com olhos de peixe". O autor já disse: "reinventamos nosso passado, de modo que ele se torne suportável e nos ajude a sustentar um projeto de existência".

Castello sempre foi reconhecido como jornalista cultural e como escritor de biografias e outros gêneros de não-ficção, muitos consideram que chegou o momento de reconhecer sua capacidade como romancista. Poderíamos até afirmar "profissão: jornalista ― coração: romancista", pois Ribamar foi escrito seguindo a voz do músculo cardíaco. Batimento de lembranças e emoções.

Destacamos que essa obra foi uma das ganhadoras do Prêmio Machado de Assis (2º lugar) outorgado pela Fundação Biblioteca Nacional, edição 2010.

A leitura de Ribamar é prazerosa, a linguagem clara (sem artifícios desnecessários), com momentos de profundo impacto emocional. E quando terminamos de ler a última página, pegamos uma caneta copiamos frases e parágrafos para pensar neles com calma. Ribamar é um livro para saborear lentamente, pois deixa em nossas papilas gustativas o sabor da infância, dos sonhos, dos conflitos e da terrível aventura de termos nascido seres humanos.

Para ir além





Isabel Furini
Curitiba, 5/1/2011

 
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