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Terça-feira, 15/5/2012
De onde vem a carne que você come?
Wellington Machado

Sempre pensei na possibilidade de me tornar vegetariano um dia. Mas nunca consegui. Gosto de carne; não abro mão de duas feijoadas por inverno a cada ano. Mas a experiência de ser "natureba", comer somente aquilo que me faz bem, despertou meu interesse para o livro Comer animais, de Jonathan Safran Foer. Resolvi ler o livro "avalizado" pela agradável experiência com Extremamente alto e incrivelmente perto, do mesmo autor, um dos mais interessantes romances americanos sobre o 11 de setembro.

Comer animais é uma reportagem investigativa sobre o abate (cruel) de animais nas granjas e matadouros no interior dos Estados Unidos. Poderíamos classificar o livro como um "ensaio jornalístico", de cunho presencial, fundamentado complementarmente por uma extensa pesquisa bibliográfica. A motivação de Safran Foer para dar uma pausa na ficção e se embrenhar numa reportagem foi o nascimento de seu filho. O autor levantou questões como "que tipo de alimento devo oferecer ao meu filho?", "de onde vem a comida que consumimos?", "o que é carne e qual é o caminho percorrido por ela até chegar a nossa mesa?".

Para avaliar a qualidade das carnes (de frango, peixe, porco e boi) que consumimos, Safran Foer decidiu visitar fazendas de criação e abate de animais - muitas vezes de forma clandestina, transpondo muros e cercas, à noite. Sua pesquisa buscou avaliar as condições nas quais viviam os animais em seu ambiente de criação: o nível de conforto da vida em "comunidade produtiva"; a qualidade e quantidade de alimentos que recebiam. Foer queria saber também como eram transportados e abatidos esses animais. O que o autor apurou é estarrecedor, a ponto de lembrarmos de seu livro a cada bife que repousa em nossos pratos. A busca de produções cada vez mais eficientes de animais para consumo humano ignora qualquer padrão, mínimo que seja, de respeito aos animais e ao meio ambiente.

No caso da captura de peixes, Foer revela o "apelo covarde" do homem, que se vale da tecnologia de um "radar GPS" para identificar grandes cardumes no mar. O grande problema apontado pelo escritor é a captura acidental: para cada quilo de peixe colhido na rede, outros 26 quilos de outros animais "inocentes", como cavalos-marinhos, são mortos. Foer argumenta também que a matança desenfreada promove a destruição dos peixes no seu sentido de comunidade, ressaltando até um "valor intelectual" desses animais. Segundo o autor, os peixes são capazes de construir ninhos complexos, têm relações monogâmicas, caçam conjuntamente, têm memória de longo prazo e transmitem conhecimento. Capturá-los seria provocar uma ruptura nessas habilidades comunitárias. Sem contar as técnicas perversas de abate, que incluem deixá-los com fome durante 7 a 10 dias, a fim de eliminar a excreção durante o transporte. Muitos deles têm as guelras cortadas antes mesmo de serem jogados em um tanque e sangrados até morrer.

Safran Foer também exalta a inteligência dos porcos. Esses animais são capazes de abrir trincos de cancelas, atendem quando são chamados e têm um aprendizado que não fica nada a dever aos chimpanzés. Os porcos se estressam como humanos ao ver os outros morrerem: é comum acontecerem ataques cardíacos nesses animais na hora do abate. As técnicas de execução são as mais atrozes possíveis. Incluem um disparo de uma pistola a ar, que fura a fronte do animal com um pino de ferro. Invariavelmente o equipamento fica mal calibrado, produzindo um disparo insuficiente, "fraco", deixando os porcos semi-conscientes. Muitos deles são dependurados pelos pés e esfaqueados ainda com vida. Sem contar os maus-tratos feitos pelos funcionários das fazendas, que dão pauladas em porcas grávidas e usam chave-inglesa para darem pancadas nas costas dos animais.

As galinhas também são impiedosamente manipuladas nas granjas. A luz do ambiente é alterada para aumentar a produtividade. Uma galinha de granja é alimentada de maneira cruel para permitir o abate com apenas 40 dias de vida. 30% delas têm ossos quebrados devido aos ambientes apertados em que são mantidas. No abatedouro, são penduradas em esteiras, onde muitas defecam de dor. A técnica de abate consiste em mergulhá-las em água eletrificada antes de irem para o cortador automático de pescoço.

Com os perus não é diferente. Muitos deles têm o bico quebrado, apresentam feridas, ficam cobertos de sangue e não andam normalmente. Os perus são gerados por inseminação artificial (não fazem sexo, portanto; essa "abstinência" é contestada com veemência por Safran Foer). Muitos perus nascem deformados.

O livro de Safran Foer tem um caráter de denúncia - não poderia ser diferente. Mas o autor visitou também algumas (poucas) fazendas onde a criação de animais é feita de forma mais humanitária. Os bois e porcos são criados ao ar livre, com pasto natural e espaço de sobra para levarem uma vida digna. Há uma preocupação em reduzir ao máximo o sofrimento dos animais na hora do abate e minimizar os riscos de contaminação das carnes. Mas esses bons exemplos são poucos nos Estados Unidos. Ressalte-se que estamos falando de um país desenvolvido, onde as leis sanitárias são reavaliadas a cada 4 anos.

Apesar de o livro de Foer estar recheado de (maus) exemplos no trato com animais, a intenção do autor é levar a discussão para a sociedade e sensibilizar as autoridades governamentais. As alternativas apresentadas pelo autor abarcam três aspectos.

O primeiro, utópico, seria as pessoas optarem pelo vegetarianismo. Safran Foer se tornou vegetariano e o livro tende a convencer o leitor a fazer o mesmo. O autor apela para argumentos como a possibilidade de substituição da carne por outro tipo de proteína, e fala de sua própria experiência ao resistir à tentação que teve de comer carne após tomar a decisão.

O outro argumento é moral: é justo submeter os animais a maus-tratos como os descritos acima para saciarmos nossa vontade? O embate entre o ser humano (onipotente) e os animais (frágeis) é desleal. Safran Foer aborda também a questão ecológica, a redução da camada de ozônio causada pela criação de bois em grandes áreas desmatadas.

A outra alternativa seria de âmbito legal e de envolvimento governamental. Por que as autoridades não se interessam pelo assunto? Por que deixam ocorrer essas atrocidades na produção animal sem uma fiscalização séria? Por que o tema sequer é lembrado nas campanhas presidenciais? Onde estão as leis para obrigar os abatedouros e granjas a tratarem seus animais com dignidade?

A leitura de Comer animais não me fez ser tão radical como Safran Foer. Não me tornei vegetariano, mas mudou a minha maneira de pensar: passei a considerar o sofrimento dos animais, principalmente os de grande porte, como o porco e o boi. Reduzi drasticamente o consumo dessas carnes. Tenho preferido uma dieta com peixes e, muito raramente, frango. Há dias em que, na ausência de peixe, não como carne alguma. Estou me habituando a não fazer da carne um ingrediente tão essencial no meu prato.

Não sei se uma "reação" da sociedade (não comer mais carne), almejada por Foer em seu livro, seria uma alternativa à redução do sofrimento dos animais - temos de avaliar até as consequências econômicas da "abstinência social" da carne. Mas um "livro-denúncia" como o Comer animais certamente é valido para trazer a questão para o debate. Em tempos de Facebook, de ocupe wall street, onde a informação é disseminada num piscar de olhos, pode ser que o tema alcance níveis estratosféricos, forçando governos a colocarem o assunto em pauta.

Para ir além:

Assista ao vídeo Conheça a sua carne , com gravações de maus-tratos aos animais. Atenção: as imagens são fortes.

Wellington Machado
Belo Horizonte, 15/5/2012

 
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