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Quarta-feira, 17/10/2012
Os contos de degeneração de Irvine Welsh
Luiz Rebinski Junior

Em tempos politicamente corretos, em que as marchas temáticas e ideológicas ganham status de procissão, ler um cara como Irvine Welsh é quase um ato de resistência. O malucão escocês, que há 20 anos mostrou ao mundo com quantos barbitúricos se faz uma geração perdida, continua acertando na dose. Seus personagens anárquicos e desajustados continuam com o mesmo grau de inconsequência de Spud e Sick Boy, a dupla de doidões que protagoniza Trainspotting, primeiro romance de Welsh, que se tornou mundialmente conhecido pelas mãos do cineasta Danny Boyle.

Quem não é muito chegado em uma bitinicagem, pode até torcer o nariz para os temas que Welsh tanto gosta - drogas, no topo da lista -, mas ninguém que tenha lido pelo menos uns três livros na vida pode dizer que o rapaz não tem a manha de contar uma boa história. Welsh é um escritor! A afirmação pode parecer ingênua, mas não é. Já que, nunca é demais repetir, não basta escrever e publicar livros para ser escritor. O papo é mais embaixo. Mas isso é coisa para outro dia, não agora. Welsh é, sobretudo, um romancista. Além de Trainspotting, escreveu outros cinco livros no gênero, como Pornô e Crime. Daí a minha curiosidade em ver como o escritor se sairia escrevendo no gênero que mais gosto: o conto. Romancistas de ofício às vezes se enrolam quando descem o degrau e encaram o primo pobre da literatura. Não é caso de Irvine Welsh.

Welsh, como contista, mantém a pegada literária do romancista, mas sem que os contos tenham cara de romance abortado. Pelo menos é assim em Requentando repolhos, coletânea de histórias curtas (ou quase) que a Rocco, editora de Welsh no Brasil, soltou há pouco tempo por aqui. Uma pena que o tradutor tenha suprimido a segunda parte do título original, algo como "contos de degeneração química". É uma ótima definição para as histórias, que foram publicadas de forma espaçada em periódicos literários, mas que ainda assim se comunicam muito bem.

Chamar um escritor de "perspicaz observador da alma humana" é o que de melhor se pode fazer a um autor, mas o elogio que se pode fazer a Welsh passa longe do etéreo, pois o escocês prefere olhar para as coisas terrenas, mais especificamente para a confusão em que o mundo se meteu depois da Revolução Industrial. Welsh cutuca fundo as feridas do capitalismo, mostrando, de forma sempre divertida, como o sistema fode com gente que até pouco tempo acalentava alguma esperança na vida e no ser humano. Mas não, Welsh não é o que se pode chamar de um autor engajado. Pelo contrário, talvez não haja um autor contemporâneo menos engajado que o malucão escocês. Welsh, de forma magistral, aponta sua machine gun para vários alvos: a igreja, os conservadores, os neo hippies, os modernos, os cuzões, os ricos, os drogados, os homossexuais.

O homossexualismo, aliás, é tema de uma das melhores histórias do livro. "Culpa católica (você sabe que adora isso)" é um bom exemplo da inteligência de Welsh como escritor. E de como um conto pode oferecer tantas possibilidades de leitura e ter tantas reviravoltas quanto um romance. Joe, o personagem do conto, é um beberrão homofóbico que na primeira cena da história espanca um gay na rua. Joe "queria obliterar as feições retorcidas da boneca boiola, mas só conseguiu encher a cara dele de pontapés", enquanto seu amigo Charlie chegava para controlá-lo. Os dois então vão comemorar a surra no gay em um pub em que a irmã gêmea de Charlie se encontra. Lucy (a irmã) e Joe acabam na cama e, neste momento, Joe tem uma espécie de colapso, em que a narrativa de Welsh, entre a piração e a realidade, joga com o leitor. Joe começa a ter alucinações que viram pesadelos. Envolto em uma maldição, ele se vê transando com alguns de seus melhores amigos. Angustiado para se livrar do pesadelo, a certa altura, Joe tem uma epifania e encontra o diabo.

"A confirmação de minha morte induz em mim uma estranha euforia, e um alívio que não é pequeno.

- Então estou morto! Obrigado, porra! Isso quer dizer que eu nunca enrabei meus amigos. Você me deixou meio preocupado com isso!

O velho puto angelical lentamente balança a cabeça com seriedade.

- Você ainda não está do outro lado.

-Você é um espírito inquieto, vagando sobre a Terra.

- Por quê?

- Castigo. Essa é a sua penitência.

Eu não estou a fim disso e pergunto ao escroto:

- Castigo? Eu? Que porra eu fiz de errado?

- Bem, Joe, a verdade é que você não é um mau sujeito... mas anda um pouco misógino e homofóbico. De modo que sua punição é fazer com que você vague pela Terra como um fantasma homossexual, fodendo seus antigos amigos e conhecidos."

E a penitência só se encerrará quando "Joe começar a gostar disso, e deixar de sentir culpa". O conto que parecia ser uma libelo a favor da misoginia, acaba como uma ótima piada, mas sem resvalar no moralismo piegas.

Há duas histórias que lembram muito o cenário e os temas de Trainspotting e devem fazer a cabeça de quem ainda mantém frescas na memória as ruelagens da turma de drogaditos do primeiro romance de Welsh. Em "O incidente de Rosewell", Welsh recria novamente o cenário de poucas possibilidades da juventude originária da classe operária escocesa. No conto, três amigos bolam um plano para receber uma espécie de seguro social dado a pessoas que se machucam gravemente. A tática: espancar um dos três rapazes, que se oferece como voluntário. A partir daí Welsh solta a imaginação e constrói uma história repleta de violência, em que há espaço até para extraterrestres que abduzem a garota mais gostosa da turma. Já em "A festa", um rapaz sofre overdose e é carregado, madrugada a fora, por seus amigos, que só depois de muito tempo percebem que ele está, na verdade, morto.

Welsh sabe conjugar bem essas ideias que, lendo assim, parecem meio despropositadas. Mas o mais interessante na literatura do escritor, é que ele consegue contextualizar essas loucuradas com o ambiente social em que vivem os jovens das classes mais baixas de seu país. Sem, no entanto, que seu texto se torne panfletário. Diferente de Nick Hornby, a quem Welsh dedica um dos contos, o escocês é um escritor versátil, que consegue falar sobre temas diversos, não apenas sobre os assuntos que o consagraram. É assim com "Eu sou Miami", conto de oitenta páginas sobre o professor aposentado Albert Black, que vai visitar o filho rico em Miami e se depara com um mundo estranho, que oprime os seus valores de crsitão convicto. O conto todo é uma reflexão sobre os antagonismos que regem o mundo, sobre a picaretagem dos picaretas, a falsa aura que cobre os puritanos e a sordidez que sustenta o capitalismo.

Requentando repolhos certamente não é para leitores que, como Albert Black, zelam pela moral e fé. Afinal, um livro que abre com a história de um homem que só pensa em futebol no momento em que sua mulher perde as duas pernas ("Falta em cima da linha"), não pode agradar gente de boa índole que milita em causas a céu aberto. Mas que é um puta livro, isso é.

Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 17/10/2012

 
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