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Quinta-feira, 9/5/2013
Um livro canibal
Carla Ceres

Quem se interessa por cinema e literatura contemporânea já deve ter se encantado com As Aventuras de Pi (Life of Pi) em forma de filme e/ou do livro que lhe deu origem. Os mais curiosos também leram Max e os Felinos, novela de Moacyr Scliar da qual o escritor Yann Martel se alimentou para escrever seu romance. Ainda assim, deixo aqui um aviso: este texto está infestado de spoilers.

Nenhuma das discussões sobre plágio ou não plágio pode se pretender mais conclusiva do que a admirável atitude de Moacyr Scliar sobre o assunto. O escritor gaúcho agiu com dignidade, enquanto Martel, por arrogância, manchou o próprio nome. O que importa agora é fazer justiça ao livro de Martel, uma obra grandiosa a despeito da desonestidade intelectual de seu criador. Sim, As aventuras de Pi é um romance canibal que se alimenta de inúmeras outras obras como a Bíblia; o Bhagavad Gita; O Relato de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe; Moby Dick, de Herman Melville, livros de filosofia, misticismo e muitas outras fontes exaustivamente pesquisadas nas áreas de navegação e biologia, com especial ênfase à etologia que, como diz o Michaelis, é uma "parte da ecologia que trata dos hábitos dos animais e da acomodação dos seres vivos às condições do ambiente".

Yann Martel estava se afogando em um mar de influências desconexas, algo muito fácil de acontecer a um escritor culto e viajado que se interessa por filosofia e religiões. Ele não conseguia transformar seus conhecimentos em uma embarcação capaz de salvá-lo da falta de ideias originais, as únicas aptas a flutuar e sobressair-se diante da mesmice editorial. Por sorte, deparou-se com um escaler vindo de um país exótico. A pequena embarcação em forma de novela abrigava um jovem náufrago chamado Max e um jaguar. Martel agarrou-se a ela e transformou-a em um transatlântico através de trabalho árduo de pesquisa e composição.

As Aventuras de Pi é um belo ecossistema literário, semelhante à ilha carnívora onde Pi e Richard Parker se abrigam por um tempo, mas de onde acabam por fugir. Sua originalidade está na seleção e composição de influências e empréstimos. O próprio nome de Richrd Parker é um exemplo disso. O autor confirma que encontrou esse nome em outras três histórias de canibalismo no mar. Em O relato de Arthur Gordon Pym (The Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket, 1838), romance de Edgar Allan Poe que influenciou Herman Melville a escrever Moby Dick, Richard Parker é o nome de um dos marinheiros amotinados que estão sob a liderança do malévolo cozinheiro do navio. (Pois é, um cozinheiro sanguinário como o cozinheiro do Tsimtsum, navio que afunda com a família de Pi.) Arthur Gordon Pi, quero dizer Pym, seus dois amigos e seu cachorro chamado Tigre vencem o cozinheiro e aceitam Richard Parker em seu grupo que agora se encontra sem comida, no meio do mar. À beira da morte, Parker sugere que os quatro sobreviventes façam um sorteio para decidir quem deveria morrer para servir de alimento aos demais. Pym/Pi se horroriza com a ideia, mas os outros o convencem. Parker se dá mal no sorteio e termina devorado.

Martel admite que se inspirou em Poe, mas salienta que O relato de Arthur Gordon Pym está longe de ser uma obra-prima. Atitude semelhante à que tomou em relação a Moacyr Scliar, lamentando que "uma ideia tão boa" como a da parte central de Max e os felinos "tivesse sido estragada por um escritor menor". Essa arrogância é típica dos grandes arranjadores de ideias alheias. Mas voltemos a Richard Parker.

Em 1884, a vida real se encarregou de plagiar Poe. O iate Mignonette afundou deixando quatro tripulantes à deriva num bote salva-vidas. Entre eles estava um jovem camareiro órfão chamado Richard Parker. O rapaz bebera água do mar a despeito das recomendações em contrário e estava passando muito mal. Todos estavam sem água e comida há muitos dias. Alguém teve a ideia de fazer um sorteio para decidir quem seria sacrificado. A sugestão não foi aceita. Dois dos marinheiros decidiram matar Parker e assim o fizeram enquanto o náufrago que se opôs a esse crime virou o rosto para não ver. Na manhã do dia seguinte, enquanto estavam todos "tomando o café da manhã", os sobreviventes foram salvos por um navio e levados a julgamento por assassinato e canibalismo.

Em 1846, antes do caso do Mignonette, o nome Richard Parker já aparece relacionado a um naufrágio real, talvez seguido de canibalismo. O navio Francis Spaight afunda e os sobreviventes devoram o aprendiz Richard Parker. Martel reparou nas coincidências e assim escolheu o nome de seu tigre. Alguém já disse que copiar uma obra de arte é plágio, mas copiar muitas é talento. Yann Martel não é tolo a ponto de copiar literalmente, mas tem o talento de construir um belo panteão sob a influência de suas musas menosprezadas.

Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros.

Carla Ceres
Piracicaba, 9/5/2013

 
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