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Quarta-feira, 15/5/2013
Um Lugar para Fugir Antes de Morrer
Adriane Pasa

Fugir é um verbo irregular que significa afastar-se, retirar-se, escapar a algo ou a alguém. Para a psicologia, é um mecanismo de defesa. Para a música, segundo a Wikipédia, fuga é um estilo de composição contrapontista, polifônica e imitativa, de um tema principal, com sua origem na música barroca. Em desenho de perspectiva, ponto de fuga é um objeto do plano de visão, que representa a interseção aparente de duas ou mais retas paralelas, segundo um observador fixo e situa-se na linha do horizonte. Para a psiquiatria, está relacionada a uma série de patologias. Para a maioria das pessoas é uma coisa errada, vergonhosa e que não deve ser feita, porque devemos ser corajosos, enfrentar os problemas e obstáculos e não fugir deles. Fugir de bandido, cachorro louco e furacões até vai, mas das coisas da vida, aí não pode.

É só a gente comentar algo como "vou embora deste lugar" e já vem alguém dizendo, com ares de profeta das montanhas "ah, você está fugindo" ou "não é assim que se resolvem os problemas, eles vão junto com você" e vários clichês desse tipo. Eu acho que todo mundo deveria fugir alguma vez na vida. De qualquer coisa. A fuga, além de necessária, muda o lugar das coisas, protege, desorganiza, mascara, tudo vira um caos, mas muitas vezes, se pensarmos bem em algumas situações, o melhor a se fazer é "nada". Eu desconfio de quem enfrenta tudo e sabe sempre o que fazer.

Há um tipo de fuga que não implica em deixar de pagar as contas ou esquecer entes queridos morrendo de fome. Às vezes é preciso fugir um pouquinho todos os dias de outra forma, procurando em nossa imaginação um lugar que é só nosso, onde podemos ser nós mesmos e desenhar um cenário que só a gente conheça, um produto do nosso desejo mais legítimo.

Todos deveriam experimentar esse lugar. Um lugar de deleite. Onde não há censura ou perigo, medo ou dúvida. Um lugar que, por ser imaginário e termos certeza disso, não há cobranças, só direitos. Uma vez nele, podemos transgredir um pouco. E depois, de volta à "vida real" onde os problemas e verdades ainda nos atormentam, a gente consegue seguir em frente. Ou não, como diria Gilberto Gil, autor daquela música famosa chamada "Vamos Fugir". Os céticos vão dizer "ah, mas isso não é real". Sim, é tão real quanto o pão com geléia que a gente come de manhã ou a dor de cabeça que nossos problemas nos trazem. Acredito que tudo que a gente pode sentir é real.

Esses lugares não precisam ser exatamente praias paradisíacas ou aqueles círculos de luz imaginários que gurus da autoajuda sugerem. E também não é preciso entrar numa escola de meditação transcendental e comprar uma passagem pra Índia. Lugares podem ser pessoas. Podem ser um tempo. Podem ser coisas, obras de arte, filmes, brincadeiras, jogos, músicas, orações, cheiros. Podem ser personagens, histórias, situações, mas precisam ter duas coisas básicas e vitais: a nossa essência e a nossa (verdadeira) vontade. Quem consegue encontrar este lugar, tão íntimo e único, pode ter uma das experiências mais fantásticas da vida. Porque por mais estranho que pareça, a fuga pode ser também uma busca. Quanto tempo a gente pode ficar neste "lugar"? Quantas vezes será que podemos visitá-lo? Acho que não há regras.

Ninguém deveria ser chamado de louco ou covarde por experimentar uma fuga a um lugar como esse. Porque é nele, só nele, que acontece o que realmente importa: a gente enxerga a si mesmo. E pra isso, é preciso ter muita coragem.

Sugiro estes quatro filmes, sobre pessoas "em fuga".

A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo , 1985), de Woody Allen. Com Mia Farrow, que faz o papel de uma garçonete que sustenta o marido bêbado, desempregado, violento e grosseiro e que costuma fugir da realidade indo ao cinema e assistindo a várias sessões de seus filmes preferidos, até que, ao assistir pela quinta vez ao filme "A Rosa Púrpura do Cairo", ela tem uma grande surpresa.

O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno , 2006), de Guillermo del Toro. Esse é pra quem tem coração e estômago fortes. Na Espanha de 1944, oficialmente a Guerra Civil já terminou, mas um grupo de rebeldes ainda luta nas montanhas ao norte de Navarra. Ofelia, uma menina de 10 anos, muda-se para a região com sua mãe e seu novo padrasto, um oficial fascista que trata os guerrilheiros com requintes de crueldade. Solitária e com medo, a menina descobre um mundo de fantasias onde conversa com um Fauno e isso muda o rumo de sua história.

A Garota Ideal (Lars and the Real Girl , 2007), de Craig Gillespie. Com o talentoso (e lindo) Ryan Gosling, que faz o papel de um homem tímido e introvertido, que mora no mesmo terreno que seu irmão e cunhada. Um belo dia ele se apaixona por uma mulher pela internet e a insere em sua vida familiar e social. Só que esta mulher é uma boneca inflável. Uma lição de tolerância que não existe na vida real.

Paris, Texas (Paris, Texas , 1984), de Wim Wenders. Aclamado pela crítica e um dos filmes mais lindos que eu já vi, conta a história de Travis, um andarilho desaparecido há 4 anos, que é encontrado sem memória por seu irmão em um deserto ao sul dos EUA. Aos poucos ele vai recordando partes de sua vida. Com o irmão e cunhada vive também Alex, filho de Travis, que foi abandonado pela mãe. Travis e Alex vão construindo uma grande amizade e um desejo enorme de encontrar a mãe. Uma fuga seguida de uma busca. Na vida real, geralmente é assim.

Agora fiquem com uma fuga de Mozart, que é um lugar e tanto. ;-)



Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no blog Cinema Sem Blá Blá Blá.

Adriane Pasa
Curitiba, 15/5/2013

 
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