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Sexta-feira, 21/2/2014
Política e Cidadania no Sertão do Brasil (parte 1)
Diogo Salles

Toca o telefone. Era Luis Salvatore. Mas quem estava ali do outro lado da linha não era o fotógrafo profissional e idealizador do Instituto Brasil Solidário (IBS), referência em projetos sociais, educacionais e de sustentabilidade. Era o amigo. O tom era pesado, sua voz pendia entre o desespero e a desilusão. Em mais de vinte anos de amizade, eu nunca o tinha visto falar naquele tom. Naquele novembro de 2012 eu também passava por um período difícil, com o fechamento do Jornal da Tarde e as incertezas em relação ao futuro. Mas o problema ali não era sobre mim. Nem sobre ele. Pela gravidade do assunto, era o futuro do IBS que parecia em jogo.

Fui à casa dele numa tarde e conversamos longamente sobre o problema. O papo se estendeu madrugada adentro. Por anos, o IBS evitou ao máximo se envolver em questões políticas locais. Nunca recebeu verba de nenhum partido, nunca serviu de plataforma para nenhum governo. Sempre adotou uma postura de distância à questão partidária e respeito aos debates políticos de cada município. Como eu já havia relatado em outra oportunidade, a política já tinha batido de lado com o IBS algumas vezes. De cada dez cidades, sempre tinha uma ou duas em que o prefeito/coronel tentava se apossar do trabalho para se promover.

Sempre que a população abraçava o IBS, só restava ao prefeito duas saídas: ou abraçava a causa junto ou engolia seco. Na grande maioria das cidades em que o Instituto passou, foi bem recebido e o trabalho correu alheio às questões partidárias, já que nosso ideal é trabalhar junto a professores, alunos e gestores locais e deixar que eles assumam total controle dos projetos. Nosso papel era o de implementação; o deles, de multiplicação. Sempre partimos do pressuposto de que as pessoas querem autonomia para tomar suas próprias decisões e assumir seus projetos de vida. Os resultados que colhemos juntos durante esses dez anos comprovam isso.

Mas agora a situação era séria. A política tinha batido de frente com o IBS e os destroços estavam espalhados pela estrada. Eram tempos de transição entre prefeituras em todo o país. Para nós aqui nos grandes centros isso pode não significar muita coisa, mas para o povo do sertão, é um período dramático, principalmente se o candidato da oposição ganhar. Enquanto Luis discorria sobre os fatos recentes, seu desespero parecia aumentar a cada palavra. Para um cara que sempre soube enfrentar as situações mais desafiadoras, pela primeira vez na vida, o vi dizendo que não sabia o que fazer. Como eu já tinha alguma rodagem no jornalismo político, poderia trazer um olhar de fora e, quem sabe, propor alguma saída para essa situação.

Eu achava que já tinha visto de tudo na política, mas foi naquele dia que fiquei conhecendo algumas das piores práticas políticas do Brasil profundo. Para começar, existe a questão da festa da cidade, geralmente a de São João. É ali que boa parte do orçamento da cidade é torrada com comes e bebes gratuitos e ao som de bandas famosas (algumas delas conhecidas nacionalmente), contratadas de forma superfaturada. De alguma forma, existe por aqueles lados uma crença de que quem produzir a festa mais megalomaníaca fica com os votos. Vem daí o bordão "prefeito que não faz festa, não se reelege". Não surpreende que prefeitos vivam dizendo que não tem dinheiro para mais leitos em hospitais ou para melhorar o salário dos professores.

Outra prática conhecida é a do político vendendo serviços à sua própria população. Funciona assim: o candidato é eleito, e compra um carro para a prefeitura. Depois ele aprova o aluguel desse carro e coloca um parente como motorista, cobrando pelo transporte das pessoas. Em síntese, é uso da máquina pública em beneficio próprio. No fim, ele lucra tanto, que pode se dar ao luxo de abrir mão de seu salário, doando-o a potenciais eleitores. É o melhor negócio do mundo. Ele não cumpre com suas obrigações de governante, fatura muito dinheiro e ainda se reelege ao final do mandato.

Quando eu já chegava à conclusão de que alguma atitude drástica precisava ser tomada, veio o tiro letal: o "assalto de dados". Em diversas regiões do país, é prática corrente no final do mandato a prefeitura que deixa o poder simplesmente desmantelar tudo o que foi feito para que o prefeito que chegar não colha os resultados obtidos nos últimos quatro anos. Carros, computadores, celulares, tudo é levado embora como se não fossem de propriedade do Estado. E assim o governo seguinte começa em meio ao caos. Salários atrasados, rombos no caixa da prefeitura, alunos sem aula, postos de saúde abandonados. Por isso que as eleições municipais acabam sendo muito mais cruciais para o povo do sertão do que as eleições majoritárias.

Para a população dos grandes centros, quando um programa de sucesso é desmantelado, temos manchetes na imprensa, reportagens de TV e toda a gritaria das redes sociais. Bem ou mal, existe pressão em cima do poder público e o prefeito acaba tendo de ceder. No sertão, onde não há uma imprensa tão atuante (ou ela é de propriedade dos coronéis), o "assalto de dados" pode ser feito a céu aberto, sem qualquer questionamento. A impunidade é garantida, já que a população tem receio de confrontar os donos do poder, temendo represálias. E os poucos professores e secretários de educação que tentaram combater essa prática sofreram toda a sorte de ameaças.

Ao ouvir as explicações do Luis, visualizei todos os trabalhos do IBS junto às escolas sendo empurrados descarga abaixo. Projetos de meio ambiente, coleta seletiva, reciclagem, hortas comunitárias, bibliotecas, saraus literários, escovódromos sustentáveis, salas de informática, exposições de arte e fotografia, tudo. Um trabalho de anos indo para o ralo em poucos dias.

Há anos eu tinha um projeto de cidadania da gaveta. Para não matar o público de tédio, minha ideia era promover palestras falando de política e cidadania usando a linguagem da charge política como fio condutor. Era a hora de desengavetar o projeto. Durante os meses seguintes, escrevi, reescrevi, editei e formatei o conteúdo. O Luis me retornava com suas observações e encontramos o momento certo para lançar: o II Encontro Nacional do IBS, em Lençóis (BA) em setembro de 2013, onde as 14 cidades selecionadas expunham os resultados do último biênio em suas palestras.

Havia muita apreensão também, pois os temas que eu levaria nunca tinham sido discutidos em nenhuma cidade. Minha presença lá seria uma surpresa (não muito agradável, talvez) para todos que não faziam parte da equipe. Era um recomeço, um longo processo de abertura do debate político, por isso era preciso adotar um tom sério e expor a gravidade da situação.

Em minha pesquisa para criar essa palestra, dois livros se destacaram: 1808, de Laurentino Gomes e Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. Os vícios criados com a chegada da corte portuguesa ao Brasil e a figura do "homem cordial" eram de uma atualidade nauseante. Assim, a espinha dorsal da discussão que eu queria propor era a de que temos de aprender a separar o bem público do bem privado. O Brasil nunca compreendeu bem esse conceito em toda sua história. É a partir dessa separação que pode-se defender qualquer ideal, esteja ele à esquerda ou à direita. É o princípio de todo o bom debate político. Do jeito que estamos hoje, chegamos ao ponto em que vemos partidos atacando a corrupção do adversário sem atentar para as suas próprias corrupções.

Dessa forma, a separação entre o público e o privado seria o antídoto para todas as mazelas que o Luis trouxera do sertão. Caso esse princípio fosse observado, não haveria "assalto de dados", nem a gastança nababesca em festas, nem a venda de serviços básicos à população. Montei minha exposição a partir daí e abordei outras questões que corriam em paralelo, como o paternalismo, o fisiologismo, os truques do marketing político para enganar o eleitor, nossa cultura de "levar vantagem em tudo", os perigos dos "salvadores da pátria" e de se misturar política com religião. Cada slide era acompanhado por uma charge ou tirinha, aumentando a carga crítica.

Abordei também algumas boas práticas que vem sendo adotadas em cidades que decidiram se mobilizar e participar ativamente do debate público, interferindo no processo político. Analisei também o flanco aberto pela internet para questionar governantes, já que blogs e redes sociais funcionam como ferramentas de mobilização. E algumas considerações sobre as tais jornadas de junho, um fenômeno que ainda será muito estudado, debatido e destrinchado na área das ciências políticas. No geral, o conteúdo da palestra era explosivo, mas fundamental, a meu ver.

Para minha surpresa, a palestra foi muito bem recebida. Durante o Encontro, as palestras duravam cerca de uma hora e pouco. A minha foi estendida para duas horas e meia, devido ao longo debate que gerou. Como era de se esperar, algumas saias ficaram justas e algumas outras carapuças serviram (não que eu tenha algum problema com isso, afinal, minha função como chargista de jornal era exatamente essa). Mas no geral senti que as pessoas estavam perdendo o medo de falar de política, tanto que fui procurado por gente de quase todas as 14 delegações depois da palestra. Todo mundo tinha o seu "causo" para contar. Na maioria das vezes o tom era de agradecimento, pois era visível que estavam com as politicagens de sua cidade entaladas pela garganta.

Ouvi todos os desabafos, opiniões e sugestões e refleti muito nos meses seguintes, já que o plano era incluir a palestra de "Cidadania e Política" no circuito de Seminários que o IBS vem promovendo. A ideia era iniciar o novo biênio falando cada vez mais de política, para evitar que os fatos de 2012 se repetissem. A primeira etapa desse biênio ocorreu em fevereiro de 2014 e passou por Piauí, Maranhão e Paraíba, onde pude aprofundar os temas iniciados no Encontro em Lençóis e começar a propor e debater soluções para os problemas. Acredite ou não, o sucesso desses seminários foi ainda maior, mas isso é assunto para a próxima coluna...

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Política e Cidadania no Sertão do Brasil (parte 2)

Diogo Salles
São Paulo, 21/2/2014

 
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