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Quinta-feira, 12/6/2014
A Copa mais triste de todos os tempos
Elisa Andrade Buzzo


ilustra: Renato Lima

Uma cidade deserta e vulnerável por tantas greves e manifestações antecede a festa. Um campo vazio se abre na pátria incerta, dividido ao meio e obscuro em terra batida. Num lado a paixão pelo futebol, que se desvanece, de cujo alimento talvez já estejamos extasiados. Do outro, dialoga uma tímida euforia, estamos impedidos, afinal, de manifestar contentamento. Neste clima pré-Copa, a cidade está irreconhecível, titubeante; antes hesitante. Para qual lado ir? O brasileiro está entre honrar seus compromissos e botar tudo abaixo, entre partilhar suas alegrias mais íntimas ou lançar seus protestos mais verdadeiros ou hediondos.

Não há muitas bandeiras nacionais hasteadas, mas pode-se encontrar esmaltes e unhas artísticas comemorativas, tendendo ao verde e amarelo, estes relembrados quase que apenas nos momentos futebolísticos, esportivos. As ruas estão noutra cor, que mais seria uma falta de cor, abandonadas, esbranquiçadas. A perplexidade em sua variedade de tons estampa a camisa e o rosto dos brasileiros, e isto não há gringo que compreenda. Num pacto secreto nós, brasileiros, nos entendemos, e sabemos da paradoxalidade deste momento que não se imprime nas capas dos jornais, antes como que se adivinha no ar.

O desalento subverte a atmosfera e o céu nem mais azul quer ser, agora é duma brancura parada, translúcida. Como uma convalescente, a cidade coloca sua cabeça para fora da janela, depois cria forças, atravessa ruas e ruas e não há trânsito, não há ônibus, os terminais estão vazios, as plataformas desimpedidas, todos parecem estar em quarentena, em casa, no trabalho, retidos. O ar está parado, não há folha que se mexa, e isto antecede algo maravilhoso, espetacular ou chuvoso.

Entramos numa profunda crise de identidade, não há música que nos anime, estamos cansados de um animalesco extravasamento, dos estereótipos que tão bem nos caíam, mas que agora parecem incomodar mais. Não queremos mais ser enlatados num axé-pop sexualizado, ainda que sejamos isto também. Ainda assim, e ainda bem, somos diversos, unidos em um sem-número de possibilidades de três heranças culturais, vários. Não só isso, passamos a nos compreender melhor, e também queremos ser verdadeiramente grandes, magnânimos.

Agora estamos mais para um simbolismo do que para uma imagem estanque de brasilidade. Uma nação que inicia um forte processo de se tornar mais simbólica e diante de forças sociais que se levantam vai sediar uma grande festa mundial num clima raro. Cara precária, rosto em rebento. Nestes dias de céu indeciso, recolhemo-nos em uma pátria conceitual, em pleno processo de feitura e autorreconhecimento. E quando a calada da noite silencia os protestos, finalmente se desenha uma chuva, para com a sua frialdade nos envolver num torpor preparatório antes da apoteose.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 12/6/2014

 
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