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Quinta-feira, 10/7/2014
Cidade-sinestesia
Elisa Andrade Buzzo


ilustra: Renato Lima

Cheiro de frango assado inundando as esquinas nas manhãs de sábado, derretendo gordura nas batatas, cozinhando nas televisões de cachorro dos bares. Passar distraidamente, sentir, direcionar a atenção para a alegria da comida. Cheiro que não deixa de alimentar e transportar para outros momentos e o paladar que se teve então. Acordar com este odor dos dias de descanso, a cidade ainda lenta, as ruas numa calmaria falsa e antiga, aos poucos se estruturando para todos correrem a almoçar, entrar em ritmo frenético de obrigações de finais de semana.

À noite, cheiro de lenha das pizzarias iniciando o período de entregas. Porque na cidade, quando se aprofunda o final do dia, uma certa tranquilidade volta a reinar nos quarteirões dos bairros. Estes animados por pequenos polos e quando se caminha se sente esta outra movimentação, a de preparar o forno, estender a massa, manejar a borda, colocar os ingredientes e iniciar a receber os pedidos de entrega. E assim se vai inflando a vida. Noite paulistana é cravejada de entregadores com motos, cortando as ruas com o destino da entrega, apenas.

Se a noite é de verão, grilos cricrilando em algum matagal, que ainda há na cidade terrenos esquecidos. No que há de silêncio, se elevam alguns ruídos, imperceptíveis durante o dia. E assim, quando anoitece, chega o momento de escutar a terra da cidade, muito plácida e indefesa ao dispor de quem quiser para si tomá-la. Sua vegetação se presentifica como os seres vivos a pernoitar solitariamente. Este é o ápice de sua dominação sobre a cidade, sugando a terra, dispondo do espaço ao seu redor para lançar folhas e galhos.

Pelo gradeado dos prédios ou rente às plantas das calçadas estão as damas-da-noite lançando seu discreto perfume de jasmim. Que vai se esvaindo, como notas de um instrumento musical cada vez mais imperceptíveis diante da parada do instrumentista, de tantas variáveis fora do controle do ouvinte, o qual aguça seus sentidos para voltar a ouvir um aceno sensual, e então novamente mergulhar pela beleza daquele tempo lançado dentro do tempo. Cenas sinestésicas, difusas no ambiente, aguçando os sentidos, para depois se instalar na memória como monumentos de delicadeza.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 10/7/2014

 
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