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Quinta-feira, 7/2/2002
De Tambaú ao Rio Sanhauá*
Adriana Baggio

O Carnaval está chegando. Estar no Nordeste e ficar fora dessa festa é quase impossível. Nunca fui muito chegada em pular carnaval, ainda mais quando as marchinhas deram lugar aos axés e pagodes da vida. Aqui em João Pessoa, como em outros lugares do Nordeste que não conseguem competir com Recife e Salvador nos quatro dias de folia, o que salva a fama da cidade é a micareta, ou seja, o carnaval fora de época. Repetindo a fórmula que deu certo na Bahia, a Micaroa (Micareta + João Pessoa), assim como outras micaretas, organiza três dias de festa no estilo trio elétrico – abadá – camarotes. Nada que lembre o bom e velho carnaval. A começar pela exclusão. Se o carnaval é uma festa tipicamente popular, democrática, a micareta é elitista. A não ser que você queira ver o trio passar da calçada, precisa pagar mais de R$ 200,00 por um abadá. No entanto,o que ainda salva o carnaval autêntico, tradicional, é o Folia de Rua, típica de João Pessoa. Para não correr o risco de competir com a vizinha Recife nos dias de carnaval propriamente ditos, o Folia de Rua acaba sendo uma prévia.

O Folia de Rua começou no fim de semana passado, mas o ponto alto acontece na quarta-feira antes do Carnaval, chamada Quarta de Fogo. Contrapondo à Quarta de Cinzas, que encerra a festa, esta é aquela em que a cidade pega fogo na animação. Do alto do bairro do Miramar, de onde se avista a orla de João Pessoa, começam a descer para a praia os foliões do bloco Muriçocas do Miramar. O Muriçocas nasceu na década de 80, quando alguns artistas e agitadores culturais formaram o bloco e saíram nas ruas para festar. Na época, o bairro do Miramar era infestado de pernilongos – ou seja, muriçocas -, o que levou o povo a se vestir como os detestáveis insetos. O bloco pegou, ficou famoso é hoje é o segundo maior bloco de arrasto do mundo, perdendo apenas para o Galo da Madrugada.

Nesta Quarta de Fogo, quem desce com o Muriçocas de Miramar não vai escutar axé nem pagode. As atrações dos trios vão de bandas locais – de frevo e “rock regional” – a Moraes Moreira e Chico César. É carnaval autêntico, democrático e popular. Na chegada à praia, uns 3 quilômetros depois, os trios se reúnem e formam uma roda, continuando a festa. O Muriçocas do Miramar acaba sendo uma reunião de vários outros blocos menores, que se juntam e formam a multidão que percorre a avenida Epitácio Pessoa até a praia de Tambaú.

Ao contrário da Micaroa, cuja freqüência predominante é de adolescentes, o Muriçocas reúne gente de todas as idades e perfis: famílias, homens, mulheres, gays, crianças, os próprios adolescentes. Cada um procura sua turma, acha seu espaço e aproveita a festa. E o melhor: não é a importação de uma cultura estranha, pasteurizada. Quem deveria perceber melhor isso é o poder público, que não dá ao Folia de Rua o mesmo apoio financeiro que oferece todos os anos à Micaroa. A Micaroa é “vendida” externamente como um produto turístico. As pessoas que vêm para a Micaroa são as mesmas que fazem a rota das micaretas pelo Nordeste. Vender o Folia de Rua para o turista de outras partes do país e do exterior seria muito mais interessante e produtivo. Para que concorrer em um segmento superlotado, se você tem algo original e autêntico para oferecer?

Não sei se ainda existem muitas muriçocas incomodando os moradores do Miramar, mas uma delas permanece firme e forte o ano todo, só esperando a folia que antecede o Carnaval. É uma muriçoca enorme, feita de metal, que fica na principal praça do bairro. Hoje ela vai ter a companhia de milhares de pessoas. Se eu encarar a festa também, enquanto você está lendo esta coluna, caro leitor matutino, espero estar me recuperando do fogo dessa quarta-feira. E o Carnaval, propriamente dito? Para quem quer descansar, João Pessoa é o lugar ideal. Só as muriçocas – os insetos mesmo – vão ficar na cidade...

*Trecho do hino do Muriçocas do Miramar: "São as muriçocas, espalhando alegria, de Tambaú ao Rio Sanhauá". Tambaú é uma das principais praias da cidade, e o Rio Sanhauá é o local onde desembarcaram os colonizadores portugueses que fundaram João Pessoa. O rio e o oceano são os limites da cidade, que ao contrário de outras capitais litorâneas, não foi colonizada pelo mar.

Adriana Baggio
Curitiba, 7/2/2002

 
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