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Segunda-feira, 20/4/2015
Sobre caramujos e Omolu
Ricardo de Mattos

Desde a pré-história familiar os caramujos habitavam o quintal e o jardim da Dona Nazareth, a avó paterna. Tempo em que o entorno da casa ainda era, em grande raio, o habitat do saci e do lobisomem. Os caminhos eram percorridos pela mula-sem-cabeça. Cada vez que o sertanejo encontrou uma ferradura avulsa no meio do pasto, fechou-se por noites em seu casebre, orando pela proteção da Virgem Maria contra o malfadado muar. Houve ferreiro que disse ter trocado as quatro ferraduras de um exemplar, certa noite quando o viu mancando, mas a bazófia serviu-lhe apenas para afastar os clientes. "Ele tem parte", diziam.

O lobisomem recuou mais para dentro. O saci, vez ou outra, vem à janela reclamar fumo. Curioso que ouvimos o pio solicitante e, de fato, deixamos uma rodelinha de fumo de rolo em vão estratégico. Demorou bom tempo até ouvirmos de novo e repetirmos a oferta. Já a pobre mula-sem-cabeça deve ter complementado o churrasco domingueiro de alguém. O residente em São Francisco das Chagas de Taubaté nada pode ver diferente que já quer abater e depois narrar o feito pelo celular, enquanto dirige.

Os caramujos, porém, lá permaneceram. Concha do tamanho da mão fechada, pesada, ora branca, ora levemente amarronzada. Vai a avó de noite, levar os dois netos ao quintal para mostrar-lhes os bichos. Lentos, gosmentos, constituídos de concha, corpo e dois chifrezinhos com olhos. Lá vai o Ricardo cutucar o animal para vê-lo recolher os olhos. Ouviu dizer que sal pode derrete-lo. Não teve coragem para tanto em criança, quanto mais adulto, quando as melhores disposições são renegadas. Parabéns.

Duas diásporas. A primeira, quando vimos alguns na época de chuva e quisemos tê-los em casa. A empregada da avó embalou-os. Soltamos no nosso jardim à própria sorte. Talvez fossem do mesmo sexo, pois apesar de temo-los visto algumas vezes, sumiram. A segunda diáspora deu-se após o termino da jornada da avó. Pegamos quantos conseguimos e liberamo-los novamente no mesmo jardim. Passam boa parte do ano enterrados. Em época de chuva, saem e andam por todo lado. São atrevidos mas pouco inteligentes, pois distanciam-se do gramado em direção à garagem mesmo sem haver trechinho de grama que lhes justifique o esforço. Pegos pelas conchas, são recolocados no gramado. Cruzam - caramujo tem peru! - põem ovos e tornam a cavar suas tocas. Ocorre de estarem muito próximos da superfície e a roçadeira ou ferramenta qualquer machucá-los. Uma vez machucados, morrem e vão para o plano caramujal. O calor saariano deste último verão também foi letal para alguns. Apesar de tudo, ainda contamos mais de dez. Lentos e ligados à terra: não fossem os cães, diríamos que sãos os caramujos os animais de Omolu.

***

Certo amigo mais versado que nós em conhecimentos da Umbanda informou-nos: "você é filho de Omolu". "De quem?", perguntamos sem entender. "De Pai Omolu, orixá da morte, do cemitério e das doenças". "Promissor", respondemos em pensamento, durante a orgulhosa adolescência.

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Com o passar do tempo é que tornamos ao assunto. Quem são os orixás, afinal? Para algumas fontes, deuses da mitologia africana por vezes tão humanos e beligerantes quanto os deuses da mitologia greco-romana. Outras fontes falam em pessoas que viveram em época tão recuada que suas histórias chegaram a nós embrulhadas no plástico-bolha das lendas. Há quem fale em forças da Natureza, regentes dos mares, rios, matas e pedreiras, entre outros. Há quem já tenha aproximado os orixás dos arquétipos, o que nos pareceu mais acessível. Acaso não há na África sabedoria que não se possa concentrar e apresentar na forma daquilo que aprendemos a chamar de arquétipos?

Recolhemos dados aqui e ali. Podemos até ler o horóscopo durante o café da manhã, mas nada retemos que nos acompanhe até o quarto. Entretanto, chamou-nos a atenção que toda definição dos chamados "filhos de Omolu" trazia algo coincidente com nossa realidade. As mais variadas descrições mantiveram eixo comum, e este eixo calha com vários aspectos de nosso histórico. Ignoramos até que ponto além do interesse intelectual levaremos o tema, mas que ele intriga-nos, é inegável.

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Vieram pessoas da África. Daomé, Benin, Serra Leoa, Guiné... Ao menos das localizações geográficas atualmente sob estes nomes. Trouxeram seu culto, pois para apartá-las de seus orixás não houve navio negreiro que fizesse frente. Se aos novos "demônios" estava reservada a repressão, nada mais simples: trocam-se os nomes. Si não podia falar em Oxalá, então falava-se em Jesus. O culto a Iemanjá estava vedado? Cultue-se a Virgem Maria, ainda mais que seu manto azul-celeste pode vestir também aquela que rege os mares. Omolu é representado coberto de chagas? Podia-se escolher entre São Lázaro e São Roque, tendo como brinde a simpatia dos cães que os acompanhavam. O sincretismo nasceu da aproximação entre características, conforme as pessoas recém aportadas amealhassem informações. Eventuais relações entre santos não se projetam nas relações entre orixás. Na origem, Omolu é filho de Nanã-Buruquê e Oxalá. Rejeitado pela mãe quando nasceu coberto de feridas, foi acolhido por Iemanjá - próprio arquétipo da mãe, por sinal. A tradução literal desta história resultaria assim: São Lázaro nasceu da união entre Santa Ana e Jesus. Rejeitado, foi criado pela Nossa Senhora. Cautela, portanto, com o que se lê.

Quem estuda o assunto costuma relacionar determinado tipo físico ao arquétipo. Entre os chamados "filhos de Omolu" predominaria a estatura pequena ou média e a forma atarracada. Deixemos claro que nossa altura original é de dois metros e quinze centímetros. Contudo, nesta reencarnação iniciada no ano de 1975, preferimos assumir uma versão pocket, o que explica porque os instrumentos de medição atribuem-nos a altura de um metro e sessenta centímetros. De qualquer forma, o ajuste da psyché ao corpo foi trabalho lento, mormente na época do culto a padrões predeterminados. Nos terreiros, Omolu é representado coberto com palha da cabeça aos pés, e nesta cobertura há variação extrema de significado: ou envergonha-se de suas chagas, ou está curado mas mantém a cobertura em respeito àquela que o acolheu e alentou, ou curou-se e adquiriu tal beleza que não deseja impressionar as pessoas pela aparência física, a dimensão humana mais superficial.

Quem escreveu sobre o temperamento parece ter alguma diferença mal resolvida com o arquétipo. Acusam-no de insatisfação perene, teimosia, indisposição quanto a "levar desaforo para casa", tensão, tristeza, solidão, timidez, introspecção, distanciamento, insensibilidade, rabugice, masoquismo e lentidão. Evidente que se trata de intriga orixá-partidária, e que uma coisa é escrever tudo isto em sites e manter-se anônimo, e outra coisa é repetir tudo pessoalmente, face a face. Os registros mais esclarecidos aliam o arquétipo à discrição, à disposição para o trabalho - não apenas do trabalho em si, mas de tudo o que se refere a ele, inclusive a faxina do local, se necessária -, à maturidade, ao poder de decisão, à autoconfiança, ao Amor, à solidariedade e à lealdade. Nos últimos tempos, realmente notamos a lentidão como nota constante. Passamos por um processo de reformulação institucional e percebemos que as fases deste processo estenderam-se por anos. Individualmente, não queimamos etapa: queremos ir de "A" a "Z" passo a passo, conhecendo o caminho. Não gostamos de pressupor ou de subentender, pois estas lacunas podem ser preenchidas com conteúdo pessoal que não corresponda à realidade da coisa. Quanto ao chamado "masoquismo", si isto significar a preferência por suportar incômodos até que eles possam ser retirados de nossa vida num só ato, podemos dizer que há aproximação com nosso jeito de ser.

Cremos até que já falamos demais a respeito de nós mesmos, do que deriva certa sensação de desnudamento. Não temos o treino de Montaigne. Caro leitor e estimada leitora, até mais!

***

Baseamo-nos a escrita desta coluna em três livros. Aruanda, de Robson Pinheiro, meritório por explicar aos espíritas de que se trata a Umbanda e seus conceitos. Lendas da Criação - A Saga dos Orixás, de Rubens Saraceni, que traz a história de todos estes personagens. Alertamos que se trata de livro escrito em linguagem plena de simbologia e de referências outras que nós leigos podemos deixar - e de fato deixamos - passar batido. Por fim, lemos com menos entusiasmo Omolu, médico dos pobres, de Antônio Alves Teixeira Neto, pelas muitas referências que o autor faz aos seus próprios livros em detrimento do pouco aprofundamento que dá ao estudo do próprio orixá sobre o qual escolheu escrever. Na Internet em geral, encontramos textos que ora copiam o conteúdo destes livros, ora plagiam-se mutuamente, do que resulta que todos consultamos mas nenhum referiremos especificamente. Na versão acadêmica do Google, tivemos acesso à dissertação de mestrado de Lourdisnete Silva Benevides, intitulada A louvação das prostitutas do Jacuípe ao glorioso São Roque, interessantíssimo texto sobre cerimônia em louvor a São Roque, um dos paralelos de Omolu no sincretismo.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 20/4/2015

 
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