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Sexta-feira, 8/1/2016
Hitler e outros autores
Marta Barcellos

A primeira polêmica de 2016 já tem dono — e que dono. Adolf Hitler, e seu livro Mein Kampft (Minha luta), oferece todos os pré-requisitos e apelos midiáticos para protagonizar as infindáveis discussões polarizadas tão comuns no nosso tempo: preconceito X politicamente correto; liberdade de expressão X discurso de ódio, extrema direita X extrema esquerda, regulação X livre mercado.

Os direitos sobre a obra antissemita e de propaganda nazista pertenciam ao governo da Baviera, que proibiu sua reedição até que o livro se tornasse de "domínio público", o que acontece este ano. Agora, a sorte está lançada: nem que seja em busca dos 15 minutos de fama, os polemistas de plantão vão pregar radicalismos de um lado e de outro. O senso comum, pelo que li até agora, é de que eventuais novas edições devem ser comentadas e contextualizadas, de forma a evitar que a obra seja usada ideologicamente.

Ao mesmo tempo em que a tecnologia da comunicação, hoje, nos permite conhecer radicais em todo canto do planeta — assim como ajuda estas pessoas a se organizarem —, os pesquisadores não param de encontrar vestígios de preconceito — sob a luz dos valores atuais — em nossos ídolos do passado.

Mahatma Gandhi, segundo o livro O great soul, do ex-editor executivo do New York Times Joseph Lelyveld, era racista e pedófilo. Na nossa literatura lusófona, descobrimos que, além de Monteiro Lobato, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa também eram francamente racistas. Na coluna do escritor José Eduardo Agualusa, no Globo, surpreendo-me com o seguinte texto de Pessoa:

"O caso do Brasil é típico. Confirma (...) que os territórios sujeitos a excessos climáticos, como o calor intenso e a umidade excessiva, não são aptos a criar raças autóctones susceptíveis de civilização. (...) A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização."

Obviamente, não devemos mudar nossa percepção sobre uma obra artística em função do que hoje consideramos defeitos de caráter. Lobato continua sendo Lobato, Pessoa continua sendo Pessoa. Muitas leitoras, nestes tempos de conscientização feminista, passaram a perceber ranços machistas nas obras dos melhores escritores. Já li estudos, por exemplo, sobre o machismo em Jorge Amado: fazem todo sentido, e não me dei conta quando li todos os seus livros na adolescência.

Por isso a questão da "contextualização" é tão importante — seja na publicação marqueteira do livro de Hitler, seja na leitura das aventuras de Pedrinho. O racismo já foi eugenia que já foi ciência — e hoje ficamos, com razão, chocados com a mentalidade da época.

É nesta hora que me surge uma reflexão: com que tipo de preconceito atual — do que não damos conta da existência - as gerações futuras ficarão chocadas quando forem nos pesquisar?

Tenho um palpite a respeito dos avanços de uma minoria ainda cercada de tabus e vítima de abusos de poder. As crianças. Acredito que no futuro todos ficarão horrorizados quando souberem que os pais e "responsáveis" podiam torturar crianças, psicológica e fisicamente, como se fossem proprietários delas. Um dia, ainda vamos conseguir um jeito de proteger melhor essa minoria — e quem sabe melhorar ainda mais a humanidade. Feliz futuro novo - sem preconceitos - para todos!


Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 8/1/2016

 
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