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Quinta-feira, 16/6/2016
A Garota do Livro: uma resenha
Heloisa Pait

Queria agradecer o autor da resenha do filme “A Garota do Livro”, que me fez decidir ver o belo filme da diretora Marya Cohn. Eu estava na dúvida pois tive medo de ser um daqueles filmes tipo os da Susan Sarandon que é tão politicamente correto, mas tão politicamente correto, que você sai incorreto do cinema. Mas quando li que “a cineasta não domina os aspectos básicos da linguagem cinematográfica”, tive a certeza: essa mulher tem alguma história pra contar. E fui.

Minha sinopse livre é essa: Alice cresce numa família novaiorquina onde cultura, relações sociais e sucesso profissional estão ligados de um modo íntimo demais. Ela quer ser escritora, e o pai aposta em seu talento como o faria com um cavalo de raça. Um escritor, adotado pelo pai editor, resolve se enfronhar no mundo literário da adolescente. Quinze anos depois, ela tem um trabalho sem autonomia, ainda sob as asas do pai. Até que o autor, cujo único sucesso foi o livro escrito naquela época, dá as caras novamente.

Razões para ver o filme: como o escritor insiste com a menina, um bom texto deve estar calcado no concreto. E o filme tem cenas de Nova York tão realistas que você até sente o cheiro do lugar. O drama nunca descamba para a exploração da exploração sexual, fiquem tranquilos. Tudo faz sentido, nada é gratuito. Tudo se explica pela trama, pelos objetivos daquelas pessoas envoltas na busca da expressão, que vem junto com o poder, o narcisismo, o pavor do fracasso – uma espécie de vale-tudo novaiorquino.

Então especialmente se você é uma menina, e vai apostar suas fichas na arte, veja esse filme! Pois ele é sobre você. A partir de agora, há spoilers...

A relação entre o escritor quarentão e a adolescente é contada pela menina, e não por um homem. Não quero aqui fazer apologia do feminismo, ando até cheia disso. Mas faz diferença o ângulo que se toma. E é contada não só pela diretora mas pela personagem, de modo duplo, triplo, quádruplo. Alice conta num diário, conta ao próprio mentor e depois conta como escritora e ao namorado na vida adulta. Existe o assédio sexual desse homem que lhe dá atenção, claro. Mas o filme é sobre a exploração da vida dela e, mais que isso, da narrativa que a menina faz de sua vida e da de seus amigos de escola.

E que exploração!

Pensei em meus mentores, pensei em jovens para quem sou mentora. Onde termina o interesse que temos pelas histórias contadas e começa o interesse pelas histórias contadas? Pensei nas pessoas que retrato em minhas histórias, homenagem ou roubo? Que é de fato dizer: “me conte aí sua vida”? Generosidade da escuta ou outra coisa? Homens como o pai de Alice, vendo na própria filha um potro a ser cultivado, não é difícil ver em Nova York. Mas será que também nós, “pessoas saudáveis”, não apostamos nos filhos assim?

Mas Alice dá a volta por cima. Trombando nos homens em bares, cavalgando pela cidade pela manhã, se escorando na melhor amiga e apostando ela numa escritora de valor – bonito esse feminismo sutil, uma aposta mais igualitária, mas serena, mais madura – e, claro, encontrando um grande amor, Alice vai se encontrando como mulher, escritora, gente. Ao final, ela consegue escolher o prato à mesa, se permite amar o namorado de verdade, encontra seu lugar na profissão – nem glorioso nem humilhante. Tudo sem escândalos, tudo sutil.

Espero que minha resenha não tenha, como teve a que eu li, efeito contrário ao pretendido... Um filme pra se ver, para se deixar se identificar com todos os personagens dessa cidade maravilhosa onde há espaço para a expressão, mas a que custo.

Heloisa Pait
São Paulo, 16/6/2016

 
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