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Terça-feira, 21/6/2016
A literatura de Marcelo Mirisola não tem cura
Jardel Dias Cavalcanti

Um dos escritores mais profícuos da literatura brasileira contemporânea, Marcelo Mirisola acaba de lançar, pela Editora 34, seu novo romance: A Vida Não Tem Cura. Autor de uma dezena de romances, alguns livros de crônicas e uma peça de teatro, sua obra se diferencia totalmente da literatura para freiras ou para quem gosta de pensar delicadamente ou de forma “politicamente correta” (caso bastante comum hoje em nossos meios literários e intelectuais).

Nesse novo romance, uma certeza: a literatura de Mirisola não tem cura. Sua ácida reflexão sobre a realidade, sobre o desastre que é a existência e os descaminhos das utopias pessoais ou sociais, não deixa dúvida: o escritor, a cada dia, coloca seus leitores mais próximos da porta do Inferno de Dante: "Lasciate ogni speranza, voi che entrate" (“Deixai toda esperança, ó vós, que entrais”).

Uma novidade no novo romance de Mirisola é sua abertura para a alegoria. Um livro, portanto, menos gosmento, ou sem a porra ressecada que costuma invadir boa parte de suas páginas. Mais abstrato, por isso, mesmo que ainda penetre o cotidiano sadomasoquista do casal que é o centro do livro. Dessa vez invoca uma situação mais panorâmica. A partir de um casamento entre dois jovens, risivelmente selado nada menos que com a compra de um par de tênis All Star vermelho, o autor nos faz mergulhar no fracasso de uma geração nascida viúva de um dos seus ídolos: a banda de rock Legião Urbana.

Sua escrita (pois não se pode falar em Mirisola sem falar de sua escrita), tem a velocidade própria do nosso tempo (como é exigida por Italo Calvino em suas “Seis propostas para o próximo Milênio”). Lê-se esse romance, de 85 páginas, em duas sentadas. Se seus personagens não são apresentados dentro de um fundo psicológico-existencial-social tão complexos, é porque, para Mirisola eles são seres que vivem como pessoas de existências sociais e psicológicas brutas (ou brutalizadas ou que se brutalizam), perdidos na velocidade do vazio de sua situação. O fato curto e grosso de suas existências é o que delimita sua essência psicossocial, logo a literatura de Mirisola não vê a possibilidade de injetar num casal que se aliança comprando pares de All Star vermelhos algo além daquilo que simboliza sua decrepitude juvenil.

De que se trata afinal a narrativa? Da alegoria de uma geração, que vai se traduzir nos rumos (ou descaminhos) da história de um casal, Gui e Natasha, que se conheceram durante um show de uma banda cover do Legião Urbana, quando ele tinha 15 anos e ela 16, tiveram depois uma filha, chamada Clarinha, ele era professor de matemática delivery, com sonho de fazer Letras um dia, enquanto o dela era ter uma franquia da Cacau Show.

Enquanto ela tinha uma profissão, ele cuidava da casa: “levava Clarinha pra dentista, pra escola, pras festinhas, para onde Natasha mandava”. Além “de ensinar equação do segundo grau pra filhindo de papai”. Prisioneiros do próprio imbróglio-vida a que pertencem, ao lugar que ocupam em relação um ao outro ou na forma de vida em que se meteram, não conseguem ir além das circunstâncias que, se quisermos traduzir em termos hegelianos, não é outra que a da dialética do senhor e do escravo.

Só há senhores, segundo explica Hegel, porque alguém foi submetido a condição de escravo. O ser senhor está, portanto, associado a uma ação e acorrentado a grilhões que o definem e o caracterizam, tornando-o, de fato, o verdadeiro cativo, preso a uma condição da qual não tem como se libertar.

É o caso de Natasha, o senhor da relação, “que sempre foi austera, quase militar com as obrigações profissionais que assumia” e, com Gui, tentando manter as mesmas prerrogativas autoritárias que se impõe na condição de escrava de si mesma.

Natasha, não sei se Mirisola pensou nisso, é o nome de uma letra de outro ídolo dessa geração perdida, o Capital Inicial. Ela é a menina de “cabelo verde, tatuagem no pescoço”, que, vivendo num mundo prestes a acabar, “só quer dançar”. Fruto da “revolução molecular”, da “micro-revolução do desejo”, da “revolução feminina”, apostam em experiências bissexuais, sexo a três, música rasa, empregos inúteis, sonhos pequenos - enquanto deixam livres os ratos fazendo a festa no Planalto Central.

Frequentando shows do Legião-cover, fazendo tatuagens, frequentando Ubatuba, morando no fundo da casa da mãe do namorado, conhecendo amantes (motoboys, gerente de vendas, supervisor de almoxarifados, tatuadores) que terminam sua existência arruinados na cracolândia, Natasha paira “acima dos amantes, como se fosse um urubu sobrevoando a carniça produzida por ela mesma”.

Ele, o masoquista da relação, o escravo, vive sob a mescla de um sentimento de pena dela, do deboche e escárnio, tendo que ouvi-la denegrir a sogra (a “velha escrota cheia de pelancas que foi corna a vida inteira”), chamando-o também de corno e inferiorizando-o por sua condição de “professorzinho de matemática delivery” e péssimo amante (“ela dizia que eu não tinha pegada”).

Avançando para o desastre pessoal, como resultado de sua existência de fracassado, Gui destrói tudo à sua volta, não tendo outra conclusão sobre seu destino: “Não sobrou nem o azul do céu, apenas a grande fúria do mundo”. Depois de tocar fogo no pôster de Renato Russo, decaindo até não ter dinheiro nem para um conhaque, mergulha no submundo da prostituição infantil e termina seus dias se redimindo num centro de cura para travestis e gays de uma igreja evangélica.

Difícil abrir as entranhas desse romance numa resenha. Ao alegorizar, Mirisola cria uma representação que nunca se fecha totalmente, não totaliza, só trabalha com fragmentos de uma realidade estilhaçada. Sua obra é serial, pluralista, polissêmica, aberta. Ela diz uma coisa para exprimir outra. Ela, portanto, é uma cifra, um enigma aberto a infinitas significações. Informalidade, desordem, casualidade, indeterminação de resultados é seu modus operandi.

Se Mirisola quer anunciar uma reflexão sobre uma geração, como eu suponho, ele produz na forma do romance a própria coisa. O romance é em si a realidade social captada e evocada como aparição. Ele não “fala” no sentido da linguagem ordinária, mas traduz de maneira gestual, na configuração íntima de sua escritura, a problemática da sociedade: o romance é a resposta objetiva às constelações sociais objetivas, quando cada opção formal é um reagir à sociedade.

O romance não é, portanto, um comentário, mas a coisa em si; não uma reflexão, mas uma compreensão; não uma interpretação, mas a coisa a ser interpretada.

E o personagem Gui encarna essa realidade do romance, na indeterminação de sua existência, de uma geração que não passou de um vulto: “Vou falar de vultos. Da minha vida que foi um vulto...”.


A ilustrações do texto foram gentilmente cedidas pelo autor das obras, o artista Danillo Villa.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 21/6/2016

 
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