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Quinta-feira, 28/7/2016
Dheepan, uma busca por uma nova vida
Guilherme Carvalhal



A complexidade de um mundo atingido pelo amplo e trágico processo de migração tem pego de surpresa políticos e a população de vários países. Evidenciado no atual momento pela presença de refugiados sírios em massa na Europa, é um símbolo de uma fase nova da globalização, onde conflitos levam à movimentação territorial de milhões de pessoas e grupos em massa deslocam-se a novos países.

Utilizando dessa premissa, o filme Dheepan (ou O Refúgio, como saiu no Brasil) traz como personagens principais um grupo de pessoas fugindo de conflitos e em busca de um porto seguro na Europa. Porém, o filme vai além de meramente retratar a migração e mostrar a tentativa dos refugiados de se encaixarem na sociedade que os acolhe (nem sempre de forma calorosa).

Aqui, o eixo central da obra está na questão do ser e o processo de mudança de país é utilizado como o ponto de rompimento. Isso é altamente explorado no começo do filme, quando os personagens principais partem de seu país, o Sri Lanka, rumo à França. O conflito em questão foi a guerra civil no Sri Lanka, onde os Tigres de Tamil desejavam criar uma nação independente no norte da ilha. Dessa guerra civil resultaram milhares de mortos e refugiados, e nesse contexto a trama se inicia.

Nos momentos iniciais do filme, vemos um militar queimando corpos de soldados para, em seguida, trocar sua farda por roupas civis e então queimá-las. Esse já é um rompimento simbólico: ele queimava seus aliados e também sua vida enquanto soldado separatista, escolhendo uma vida civil. Em seguida, vemos uma mulher em um campo de refugiados procurando uma criança órfã. Ela encontra uma e vai para um posto de migração, onde afirma ser ela a sua filha.

Nesse posto está o militar aposentado, e juntos se disfarçam de família para assim conseguir escapar da guerra. Recebem os documentos de uma família morta nos conflitos e assim ele passa a se chamar Dheepan, a mulher Yalini e a criança Illayaal. Sob essas novas identidades eles conseguem o passaporte para a França.

Chama destaque ao longo do filme o fato das vidas passadas dos personagens principais serem pouco abordadam, com escassa informação sobre cada um deles. Yalini apenas conta ter uma prima residente na Inglaterra, para onde pretende ir. Illayaal é mais destituída ainda de vida pregressa. Apenas Dheepan tem um pouco mais de seu passado exposto, por causa de seu envolvimento com a guerra. O nome real de nenhum deles é mostrado.

A migração desse grupo de pessoas então atravessa a questão de seguir a outro país e a outra cultura. Sua sobrevivência passa a depender de como conseguem conviver sob o disfarce de família, sendo que nunca haviam se visto antes. O baque da inserção social se dá na apresentação de ambos enquanto um casal, tomando decisões juntas e cuidando da criança, como nos casos em que precisa ir à escola.

Sua instalação na França faz alusão à zona de guerra, pois foram levados a um conjunto residencial controlado pelo tráfico de drogas. Essa alusão é nítida: há normas a serem seguidas, horários e locais, tudo isso definido pelo poder de quem controla a área. O choque cultural é evidente, da ida de Illayaal à escola (a cena da diretora perguntando se ela estudava dá impressão de rejeição e preconceito) ou as dificuldades de enquadramento encontradas por todos.

A sensibilidade do desajuste é significativamente trabalhada pelo diretor Jacques Audiard. Dheepan reclama de não entender as piadas dos franceses, a menina passa por problemas na escola, Yalini usa um véu em público, como se essa fosse uma designação para todos os emigrados de países do leste. E esse desencaixe acaba forçando ao convívio entre os três estranhos, pela mútua dependência de viveram sob identidades falsas e pela proximidade gerada pelas suas origens comuns.

Essa mútua necessidade forma na cabeça de Dheepan uma espécie de ilusão. Ele acaba acreditando que de fato é marido e pai, e sua ações são encadeadas por essa crença, querendo proteger as duas, principalmente quando a questão da violência local se torna mais evidente. É o choque de realidades que o leva a se apegar de tal forma, pretendendo construir uma nova condição de vida, ter família, amigos e emprego de fato, ao invés de viver enquanto um diferente entre os demais.

Essa construção da nova vida, mais do que agruras da migração, são o ponto principal da obra de Audiard. A busca por uma vida nova e uma construção de identidade em outro local dão a tônica da narrativa, mais do que se prender em questões políticas, econômicas ou sociais de um problema crescente. Apresentar esse viés sobre um assunto tão significativo foi a grande sacada do filme, que foi premiado ano passado com a Palma de Ouro em Cannes.

Guilherme Carvalhal
Itaperuna, 28/7/2016

 
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