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Quinta-feira, 4/8/2016
Diálogos no Escuro
Heloisa Pait

Descobrindo um inesperado sentido

Ontem vi a exposição Diálogos no Escuro, na Unibes Cultural (anteriormente Casa de Cultura de Israel ou Centro de Cultura Judaica), que fica até começo de dezembro em São Paulo. Uma das organizadores, grande amiga minha, havia insistido que eu fosse, mas eu havia hesitado, tinha medo de ser meio forte. E foi. Mas valeu.

Como míope, nunca "took for granted" a visão. Lembro com extrema nitidez, desculpe o trocadilho, o momento em que saí da ótica com meus primeiros óculos, aqui na Avenida Angélica, aos 6 anos de idade. De repente, o mundo nítido novamente! Meu deus. A escada perdendo a perspectiva, chapada de tanta nitidez, eu tendo que me apoiar em minha mãe para descer. A imagem perfeita ofuscando a vista.

Sempre tratei os oculistas como deuses portanto. Um deles, no que hoje talvez fosse penalizado por isso, um dia se aproveitou dessa aura e me lascou um beijo na boca. Na época, minha sensata mãe me arrumou outro profissional e pronto, rimos muito.

Deuses da visão. Não havia um documentário de Spalding Grey sobre a possível perda de visão? Não havia? Eu achei muito bom! Com humor, a peregrinação pelo olhar. Amo Grey. Eu o vi no palco, “Slippery Slope”. Eu ria em momentos desencontrados da platéia, mas ria muito.

Ensaio sobre a Cegueira, obviamente, não li. Ganhei de um amigo, não li. Vou lá eu ler o que um stalinista pena sobre o olhar? Ora, só me faltava essa! Quero usar meus olhos que são preciosos para o mundo que vale a pena ser visto.

Então hesitei com a exposição. Vou? Não vou? Pois como disse eu sei desde pequena que a visão é algo dado. É algo que recebemos de alguém, de Alguém. Um glaucoma pigmentar que me obriga a pingar um colírio diariamente também ajuda a gente a lembrar do precioso da visão.

Para tratar dele – que, fiquem tranquilos, está controlado e nunca me afetou a visão – eu literalmente me trato com o melhor médico do mundo na área, um Dr. Ritch muito precioso lá de Nova York, que trata príncipes e eu no seu consultório no East Side. Usei o verbo tratar três vezes na frase anterior, má gramática ou ênfase?

Pois eu trato dos olhos, é isso o que quero dizer. Uma vez já saí de um consultório aqui no Brasil sem meu décimo-terceiro salário. Tudo bem que era uma época de vacas magras, mas mesmo assim, eu realmente não poupo.

Na entrada da exposição, a mulher mandou tirar os óculos. Eu tirei. Depois voltei ao armário e peguei de volta. Sem luz, pode ser. Sem meus óculos, aí já é demais. E fomos. Éramos quatro. Um homem alto e grande, uma moça negra, uma morena, e eu. Como o nosso guia disse ao final, as diferenças se esvaem no escuro. É verdade. Éramos quatro indistintos.

Tateando frutas, árvores, ouvindo barulhos, passando por pontes, subindo degraus, éramos quatro pessoas e um guia “com experiência em atividades no escuro”, como a moça apresentou nosso guia inicialmente.

Tive medo, tive desconforto, tive vontade de sair. Ao mesmo tempo, me diverti, celebrei as descobertas e, o que me surpreendeu bastante, adorei ter meus 3 colegas comigo. Logo no começo, já tasquei a mão no ombro do homem grande.

Quem me conhece, sabe, não sou de pedir ajuda, de pedir apoio. Deixa eu sair sozinha dos buracos onde me meti, é meu lema. Não encosta, não vem que não tem. Pois a primeira coisa que fiz, como disse, foi a mão no ombro do homem à frente.

Naturalmente, fomos nos auxiliando, dizendo: a árvore está aqui. Me dá tua mão, achei a estátua. Íamos nos guiando, claro que com a orientação primorosa do guia com experiência em atividades no escuro que, como fomos avisados, poderia nos tirar dali num instante sem dificuldade.

Ao final, no Boteco no Escuro, onde compramos suco e lanche – que confiança se precisa ter no outro para tomar um troço sem ver – o guia nos lembrou que precisamos mais de outros sentidos – audição, tato, cinestesia (no caso da ponte), olfato na feira – quando a visão nos falta.

Eu precisei mais de um outro sentido ainda. Do sentido que me faz perceber o outro, como é que chama?

Na saleta semi-iluminada, ao fim do trajeto, uma sensação de alívio e paz. Como meus oculistas, a exposição me devolveu a visão, e tive um pequeno êxtase.

Ao final, já devidamente iluminados, abracei meus colegas de percurso, participantes do diálogo no escuro, olhei-os mais olhados que antes, com mais sentido.

Heloisa Pait
São Paulo, 4/8/2016

 
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